Multitudinous Heart

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Multitudinous Heart Page 5

by Carlos Drummond de Andrade


  porém nada dizia.

  As águas cobrem o bigode,

  a família, Itabira, tudo.

  JOURNEY THROUGH THE FAMILY

  In the desert of Itabira

  the shadow of my father

  took me by the hand.

  So much lost time.

  But he didn’t say anything.

  It wasn’t day or night.

  A sigh? A bird in flight?

  But he didn’t say anything.

  We walked for a long time.

  Here there was a house.

  The mountain was taller back then.

  All the people who’ve died,

  time gnawing the dead.

  Cold damp and disdain

  in the ruined houses.

  But he didn’t say anything.

  The street he used to ride down

  on horseback, at a gallop.

  His watch. His clothes.

  His miscellaneous papers.

  His love affairs.

  Violent memories

  spilling out of old trunks.

  But he didn’t say anything.

  In the desert of Itabira

  dead things resurrect,

  unexpected and unbreathable.

  The market of desires

  displays its sad treasures,

  my yearning to get away,

  naked women, regret.

  But he didn’t say anything.

  Trampling on books and letters,

  we journey through the family.

  Weddings, mortgages,

  the cousins with TB,

  the crazy aunt, my grandmother

  gnawing on silks in her room

  when cheated on with the slave girls.

  But he didn’t say anything.

  What cruel, obscure instinct

  moved his pale hand

  quietly pushing us

  through time and forbidden

  places?

  I looked into his white eyes.

  “Speak!” I shouted. My voice

  shook for a moment in the air,

  then fell onto the stones.

  The shadow slowly continued

  that rueful journey

  through the lost kingdom.

  But he didn’t say anything.

  I saw sorrow, misunderstanding,

  and more than one old resentment

  dividing us in the darkness.

  The hand I wouldn’t kiss,

  the food I wasn’t given,

  refusal to ask forgiveness.

  Pride. Terror in the night.

  But he didn’t say anything.

  Speak speak speak speak.

  I pulled him by his coat,

  which crumbled into powder.

  I grabbed that stern shadow

  by the hands, by his boots,

  and the shadow slid free

  without fleeing or reacting.

  But he wouldn’t speak.

  And there were various silences

  couched in his silence.

  There was my deaf grandfather

  trying to hear the birds

  painted on the church’s ceiling,

  my lack of friends,

  his lack of kisses,

  our difficult lives,

  and a huge separation

  in the small area of the room.

  The small area of life

  presses me against his figure,

  and in that ghostly embrace

  it’s as if all of me burned

  with poignant love.

  Today, at last, we meet!

  Eyeglasses, memories, photos

  flow in the river of blood.

  The waters no longer permit me

  to make out his face in the distance,

  on the other side of seventy …

  I felt that he forgave me,

  but he didn’t say anything.

  The waters cover his mustache,

  the family, Itabira, everything.

  A ROSA DO POVO / ROSE OF THE PEOPLE (1945)

  A FLOR E A NÁUSEA

  Preso à minha classe e a algumas roupas,

  vou de branco pela rua cinzenta.

  Melancolias, mercadorias espreitam-me.

  Devo seguir até o enjoo?

  Posso, sem armas, revoltar-me?

  Olhos sujos no relógio da torre:

  Não, o tempo não chegou de completa justiça.

  O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

  O tempo pobre, o poeta pobre

  fundem-se no mesmo impasse.

  Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

  Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

  O sol consola os doentes e não os renova.

  As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

  Vomitar esse tédio sobre a cidade.

  Quarenta anos e nenhum problema

  resolvido, sequer colocado.

  Nenhuma carta escrita nem recebida.

  Todos os homens voltam para casa.

  Estão menos livres mas levam jornais

  e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

  Crimes da terra, como perdoá-los?

  Tomei parte em muitos, outros escondi.

  Alguns achei belos, foram publicados.

  Crimes suaves, que ajudam a viver.

  Ração diária de erro, distribuída em casa.

  Os ferozes padeiros do mal.

  Os ferozes leiteiros do mal.

  Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

  Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

  Porém meu ódio é o melhor de mim.

  Com ele me salvo

  e dou a poucos uma esperança mínima.

  Uma flor nasceu na rua!

  Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

  Uma flor ainda desbotada

  ilude a polícia, rompe o asfalto.

  Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

  garanto que uma flor nasceu.

  Sua cor não se percebe.

  Suas pétalas não se abrem.

  Seu nome não está nos livros.

  É feia. Mas é realmente uma flor.

  Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

  e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

  Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

  Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

  É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

  NAUSEA AND THE FLOWER

  Bound by my class and some clothes,

  I walk down the gray street dressed in white.

  Dejections and goods for sale observe me.

  Should I keep on until I’m nauseous?

  Can I, without weapons, rebel?

  Grimy eyes in the clock tower:

  No, the time of full justice has not arrived.

  It’s still a time of feces, bad poems, hallucinations, and waiting.

  The hapless time and the hapless poet

  merge in the same impasse.

  In vain I try to explain myself: the walls are deaf.

  Beneath the skin of words: ciphers and codes.

  The sun cheers the sick and doesn’t renew them.

  Things. Considered without emphasis, how sad things are.

  And if I vomited this tedium over the city?

  Forty years and not one problem

  solved, nor even formulated.

  Not one letter written or received.

  The people are all going home.

  They’re less free but carry newspapers

  and spell out the world, knowing they’ve lost it.

  How can I forgive the world’s crimes?

  I took part in many. Others I concealed.

  Some I found beautiful, and they were published.

  Soothing crimes, which make life more bearable.

  A daily ration of error,
delivered at our door.

  By ruthless milkmen of evil.

  By ruthless bread boys of evil.

  And if I set everything on fire, myself included?

  They called the adolescent of 1918 an anarchist,

  but my hatred is the best part of me.

  Without it I’d be lost,

  and with it I can give a few people a slight hope.

  A flower has sprouted in the street!

  Buses, streetcars, steel stream of traffic: steer clear!

  A flower, still pale, has fooled

  the police, it’s breaking through the asphalt.

  Let’s have complete silence, halt all business in the shops,

  I swear that a flower has been born.

  Its color is uncertain.

  It’s not showing its petals.

  Its name isn’t in the books.

  It’s ugly. But it really is a flower.

  I sit down on the ground of the nation’s capital at five in the afternoon

  and fondle with my fingers this precarious form.

  Inland, over the mountains, thick clouds are gathering.

  In the sea tiny white dots, panicked chickens, are moving.

  It’s ugly. But it’s a flower. It broke the asphalt, tedium, disgust, and hatred.

  MORTE DO LEITEIRO

  Há pouco leite no país,

  é preciso entregá-lo cedo.

  Há muita sede no país,

  é preciso entregá-lo cedo.

  Há no país uma legenda,

  que ladrão se mata com tiro.

  Então o moço que é leiteiro

  de madrugada com sua lata

  sai correndo e distribuindo

  leite bom para gente ruim.

  Sua lata, suas garrafas

  e seus sapatos de borracha

  vão dizendo aos homens no sono

  que alguém acordou cedinho

  e veio do último subúrbio

  trazer o leite mais frio

  e mais alvo da melhor vaca

  para todos criarem força

  na luta brava da cidade.

  Na mão a garrafa branca

  não tem tempo de dizer

  as coisas que lhe atribuo

  nem o moço leiteiro ignaro,

  morador na Rua Namur,

  empregado no entreposto,

  com 21 anos de idade,

  sabe lá o que seja impulso

  de humana compreensão.

  E já que tem pressa, o corpo

  vai deixando à beira das casas

  uma apenas mercadoria.

  E como a porta dos fundos

  também escondesse gente

  que aspira ao pouco de leite

  disponível em nosso tempo,

  avancemos por esse beco,

  peguemos o corredor,

  depositemos o litro …

  Sem fazer barulho, é claro,

  que barulho nada resolve.

  Meu leiteiro tão sutil

  de passo maneiro e leve,

  antes desliza que marcha.

  É certo que algum rumor

  sempre se faz: passo errado,

  vaso de flor no caminho,

  cão latindo por princípio,

  ou um gato quizilento.

  E há sempre um senhor que acorda,

  resmunga e torna a dormir.

  Mas este acordou em pânico

  (ladrões infestam o bairro),

  não quis saber de mais nada.

  O revólver da gaveta

  saltou para sua mão.

  Ladrão? se pega com tiro.

  Os tiros na madrugada

  liquidaram meu leiteiro.

  Se era noivo, se era virgem,

  se era alegre, se era bom,

  não sei,

  é tarde para saber.

  Mas o homem perdeu o sono

  de todo, e foge pra rua.

  Meu Deus, matei um inocente.

  Bala que mata gatuno

  também serve pra furtar

  a vida de nosso irmão.

  Quem quiser que chame médico,

  polícia não bota a mão

  neste filho de meu pai.

  Está salva a propriedade.

  A noite geral prossegue,

  a manhã custa a chegar,

  mas o leiteiro

  estatelado, ao relento,

  perdeu a pressa que tinha.

  Da garrafa estilhaçada,

  no ladrilho já sereno

  escorre uma coisa espessa

  que é leite, sangue … não sei.

  Por entre objetos confusos,

  mal redimidos da noite,

  duas cores se procuram,

  suavemente se tocam,

  amorosamente se enlaçam,

  formando um terceiro tom

  a que chamamos aurora.

  DEATH OF THE MILKMAN

  The country’s short on milk,

  it needs to be delivered early.

  The country’s full of thirsty people,

  it needs to be delivered early.

  There’s a saying in this country

  that the only good thief is a dead one.

  And so before the break of day

  the young man who’s the milkman

  makes haste with his milk can

  to take good milk to bad people.

  His milk can, his bottles,

  and rubber shoes announce

  to sleeping men and women

  that someone woke up early

  and came from the outskirts

  to bring the coldest and whitest

  milk from the best cow

  so everyone will be fortified

  for the hard struggle of city life.

  The white bottle in his hand

  doesn’t have the time to say

  all that I ascribe to it,

  and the unschooled milkman,

  who’s an employee of the dairy,

  a resident of the Rua Namur

  and 21 years old,

  has no idea what an impulse

  of human empathy might be.

  And since he’s in a hurry, his body

  leaves only the merchandise

  on the doorstep of each building.

  Given that the back door

  might also conceal people

  who aspire to the little milk

  available in our time,

  let’s walk down that alley,

  enter the hallway,

  and set down the bottle …

  Without making any noise, of course,

  since making noise solves nothing.

  My milkman so nimble,

  graceful, and light-footed

  doesn’t walk, he glides.

  But he always causes some

  slight noise: a wrong step,

  a flowerpot in the way,

  a dog barking on principle,

  or a contentious cat.

  And someone always wakes up,

  grumbles, and goes back to sleep.

  But this someone woke up panicked

  (thieves infest the neighborhood)

  and wasn’t going to waste time.

  The gun in the drawer

  jumped into his hand.

  A thief? This gun’s for him.

  The shots in the night

  liquidated my milkman.

  If he was happy, if he was good,

  if engaged, if a virgin,

  I don’t know.

  It’s too late to know.

  But the one who shot him

  lost all his sleep and ran outside.

  My God, I killed an innocent man.

  A bullet for killing burglars

  can also rob the life

  of our brother. Whoever

  wants to can call a doctor,

  the police aren’t laying a finger

  on this son of my father.

  No harm has come to the property.

  The general night continues,

  morning is slow
to arrive,

  but the milkman

  lying there in the open air

  has lost his former hurry.

  Something thick is trickling

  from the shattered bottle

  on the now quiet pavement.

  Milk, or blood … I don’t know.

  Among the hazy shapes

  barely liberated from night,

  two colors grope for each other

  and softly touch

  and lovingly embrace,

  creating a third shade

  that we call dawn.

  PROCURA DA POESIA

  Não faças versos sobre acontecimentos.

  Não há criação nem morte perante a poesia.

  Diante dela, a vida é um sol estático,

  não aquece nem ilumina.

  As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

  Não faças poesia com o corpo,

  esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

  Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

  são indiferentes.

  Nem me reveles teus sentimentos,

  que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

  O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

  Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

  O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

  Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

  O canto não é a natureza

  nem os homens em sociedade.

  Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

  A poesia (não tires poesia das coisas)

  elide sujeito e objeto.

  Não dramatizes, não invoques,

  não indagues. Não percas tempo em mentir.

  Não te aborreças.

  Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

  vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

  desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

  Não recomponhas

  tua sepultada e merencória infância.

  Não osciles entre o espelho e a

  memória em dissipação.

  Que se dissipou, não era poesia.

  Que se partiu, cristal não era.

  Penetra surdamente no reino das palavras.

  Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

  Estão paralisados, mas não há desespero,

  há calma e frescura na superfície intata.

  Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

  Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

  Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

  Espera que cada um se realize e consume

  com seu poder de palavra

  e seu poder de silêncio.

  Não forces o poema a desprender-se do limbo.

  Não colhas no chão o poema que se perdeu.

  Não adules o poema. Aceita-o

  como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

 

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