not as crosses but masts
— masts of ships that are sinking.
Alguns toureiros
Eu vi Manolo González
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparicio,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor,
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
A Few Matadors
I saw Manolo González
and Pepe Luis of Seville:
sweet precision of flowers,
gracefully meticulous.
I also saw Julio Aparicio,
from Madrid, like “Parrita”:
simple science of flowers,
spontaneous yet strict.
I saw Miguel Báez, “Litri,”
from down in Andalusia,
who grows a different flower:
anguished and explosive.
And also Antonio Ordóñez,
whose ancient flower exudes
the fragrance of old lace,
of flowers that sleep in books.
But then I saw Manuel Rodríguez,
“Manolete,” the arid one,
the most mineral of all matadors,
the sharpest and most awake,
the one with wooden nerves,
with dry and fibrous fists,
and a figure like a stick,
a stick of dried-out brush,
the one who could best calculate
the steely fluid of life,
who with the greatest precision
brushed with death on the fringe,
who gave a number to tragedy,
decimals to feelings,
to vertigo a geometry,
and height and weight to fear.
Yes I saw Manuel Rodríguez,
“Manolete,” the most ascetic,
not only nurture his flower
but demonstrate to poets:
how to tame the explosion
with a quiet, restrained hand,
being careful not to spill
his flower, hidden from view,
and how, then, to use that force
with sure hand, swift and fierce,
without perfuming his flower,
without poetizing his poem.
Cemitério pernambucano
(Nossa Senhora da Luz)
Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.
Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.
Cemetery in Pernambuco
(Nossa Senhora da Luz)
Here no one lies at rest,
even as a river does not rest
in another river, nor is
the sea a cemetery of rivers.
None of these dead
comes dressed in a coffin,
which is why they aren’t buried
but spilled into the ground.
They come in hammocks that swung
on porches open to rain and sun.
They bring their own flies.
The ground fits them like a glove.
Dead when they walked in the open air,
now they inhabit the open earth,
and so earthly are they that the earth
does not even feel their intrusion.
from
Quaderna / Four-spot
1960
Cemitério alagoano
(Trapiche da Barra)
Sobre uma duna da praia
o curral de um cemitério,
que o mar todo o dia, todos,
sopra com vento antissético.
Que o mar depois desinfeta
com água de mar, sanativa,
e depois, com areia seca,
ele enxuga e cauteriza.
O mar, que só preza a pedra,
que faz de coral suas árvores,
luta por curar os ossos
da doença de possuir carne,
e para curá-los da pouca
que de viver ainda lhes resta,
lavadeira de hospital,
o mar esfrega e reesfrega.
Cemetery in Alagoas
(Trapiche da Barra)
On a dune next to the beach
lies this corral of a cemetery,
which the sea each day, all day long,
sweeps with an antiseptic wind,
and which then it disinfects
with its salubrious saltwater,
and then, with arid sand,
dries and cauterizes.
The ocean, prizing only stones
and taking coral for its trees,
fights to cure the bones
of the disease of having flesh,
and to cure them of the shreds
left over from their life,
an untiring hospital maid,
it scrubs and scrubs and scrubs.
A mulher e a casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
The Woman and the House
Your seductive charm is more
like that of a house than of a woman,
coming as it does from within,
from what is behind the façade.
Even when it exhibits
your quiet elegance,
your sheer plaster glow
and frank laughter of verandas,
a house never exists
merely to be contemplated;
or rather, only from within
can one really contemplate it.
It seduces by what is within
or will be, when it is opened;
by what it might turn out to be
inside its closed walls;
by what has been done inside
with its emptiness, the nothingness;
by its interior spaces,
not by what it contains;
by the interior spaces
— its divisions, its areas,
how they are organized
into rooms and hallways —
which, suggesting to man
comfortable quarters,
smoothly finished walls
or hiding places in cellars,
arouse in that man
the same feeling you do:
the desire to go inside
and explore all through.
Cemitério paraibano
(entre Flores e Princesa)
Uma casa é o cemitério
dos mortos deste lugar.
A casa só, sem puxada,
e casa de um só andar.
E da casa só o recinto
entre a taipa lateral.
Nunca se usou o jardim;
muito menos, o quintal.
E casa pequena: própria
menos a hotel que a pensão:
pois os inquilinos cabem
no cemitério saguão,
os poucos que, por aqui
recusaram o privilégio
de cemitérios cidades
em cidades cemitérios.
Cemetery in Paraíba
(between Flores and Princesa)
This cemetery is a house
for those who herein lie.
A house without attachments,
a house of just one story.
And only the part of a house
enclosed by the stucco walls.
No one ever used the garden,
much less the surrounding yard.
Too small to be a hotel,
it’s more like a boardinghouse,
with a cemetery lobby
just big enough to hold
those few residents who,
coming here, refused
the privilege of city cemeteries
in cemetery cities.
A palavra seda
A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.
The Word Silk
The atmosphere surrounding you
reaches heights in which
it changes many things
concerning you or near you.
And as well as things, words
impossible in poems:
for instance, the word gold
and, until this poem, silk.
True, your person arouses
rather than inducing sleep;
nor is it a sedative, a word
derived from the word for silk.
And it’s true that the surface
of your outward person,
of your skin and of all
that gropes inside you,
has nothing of the luxurious,
false, academic surface
— that surface designated
by the phrase “like silk.”
But in you, somewhere,
or perhaps outside you,
perhaps in the ambience
made tense by your presence,
there’s something muscular,
animal, carnal, pantherish,
catlike — catlike in substance
or in a cat’s way of being —
something animal, animalistic,
crude, cruel — a cruelty — which
beneath the worn-out word
persists in the thing silk.
Cemitério pernambucano
(Floresta do Navio)
Antes de se ver Floresta
se vê uma Constantinopla
complicada com barroco,
gótico e cenário de ópera.
É o cemitério. E esse estuque
tão retórico e florido
é o estilo doutor, do gosto
do orador e do político,
de um político orador
que em vez de frases, com tumbas
quis compor esta oração
toda em palavras esdrúxulas,
esdrúxula, na folha plana
do Sertão, onde, desnuda,
a vida não ora, fala,
e com palavras agudas.
Cemetery in Pernambuco
(Floresta do Navio)
Before seeing Floresta
one sees a Constantinople
with touches of baroque,
gothic, and opera scenery.
It’s the cemetery, with its
florid and rhetorical plaster
cast in the orotund style
of the speaker or politician,
of a political speaker
who instead of sentences
used tombs to make this speech,
all in grandiloquent language —
grandiloquence, on the flat sheet
of the backlands, where naked
life does not make speeches
but talks with short sharp words.
Cemitério pernambucano
(Custódia)
É mais prático enterrar-se
em covas feitas no chão:
ao sol daqui, mais que covas,
são fornos de cremação.
Ao sol daqui, as covas logo
se transformam nas caieiras
onde enterrar certas coisas
para, queimando-as, fazê-las:
assim, o tijolo ainda cru,
as pedras que dão a cal
ou a capoeira raquítica
que dá o carvão vegetal.
Só que nas covas caieiras
nenhuma coisa é apurada:
tudo se perde na terra,
em forma de alma, ou de nada.
Cemetery in Pernambuco
(Custódia)
It’s more practical to be buried
in graves dug in the ground:
under this sun, more than graves
they are crematory ovens.
Under this sun soon the graves
are transformed into kilns
where certain things are buried
to burn into finished form:
so it is with still raw bricks,
the stones that become lime,
and the slashed and burnt brush
that changes into charcoal.
But in these graves-turned-kilns
the contents are not refined:
all is lost in the earth,
in the form of a soul, or nothing.
from
Dois parlamentos / Two Parliaments
1961
Festa na casa-grande
(ritmo deputado; sotaque nordestino)
I
— O cassaco de engenho,
o cassaco de usina:
— O cassaco é um só
com diferente rima.
— O cassaco de engenho
bangüê ou fornecedor:
— A condição cassaco
é o denominador.
— O cassaco de engenho
de qualquer Pernambuco:
— Dizendo-se cassaco
se terá dito tudo.
— Seja qual for seu nome,
seu trabalho, seu soldo:
— Dizendo-se cassaco
se terá dito todos.
6
— O cassaco de engenho
quando é criança:
— Parece cruzamento
de caniço com cana.
— O cassaco de engenho
criança é mais caniço:
— Puxa mais bem ao pai
porque não é maciço.
— O cassaco de engenho
quando é criança:
— Não só puxa ao caniço,
puxa também à cana.
— Mas à cana de soca,
repetida e sem força:
— A cana fim de raça,
de quarta ou quinta folha.
II
— O cassaco de engenho
quando é mulher:
— É um saco vazio
mas que se tem de pé.
— O cassaco de engenho
mulher é como um saco:
— De açúcar, mas sem ter
açúcar ensacado.
— O cassaco de engenho
quando é mulher:
— Não é um saco capaz
de conservar, conter.
— É um saco como feito
para se derramar:
— De outros que não se sabe
como se fazem lá.
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