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The Anarchist Banker

Page 9

by Fernando Pessoa


  “Pois foi este o processo que eu segui. Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro, enriquecendo. Consegui. Levou um certo tempo, porque a luta foi grande, mas consegui. Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial e bancária. Podia ser interessante, em certos pontos sobretudo, mas já não pertence ao assunto. Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei o processo—confesso-lhe, meu amigo, que não olhei o processo; empreguei tudo quanto há— o açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência desleal. O quê?! Eu combatia as ficções sociais, imorais e antinaturais por excelência, e havia de olhar a processos?! Eu trabalhava pela liberdade, e havia de olhar as armas com que combatia a tirania?! O anarquista estúpido, que atira bombas e dá tiros, bem sabe que mata, e bem sabe que as suas doutrinas não incluem a pena de morte. Ataca uma imoralidade com um crime, porque acha que essa imoralidade pede um crime para se destruir. Ele é estúpido quanto ao processo, porque, como já lhe mostrei, esse processo é errado e contraproducente como processo anarquista; agora quanto à moral do processo ele é inteligente. Ora o meu processo estava certo, e eu servia-me legitimamente, como anarquista, de todos os meios para enriquecer. Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido. Sou livre. Faço o que quero, dentro, é claro, do que é possível fazer. O meu lema de anarquista era a liberdade; pois bem, tenho a liberdade, a liberdade que, por enquanto, na nossa sociedade imperfeita, é possível ter. Quis combater as forças sociais; combati-as, e, o que é mais, venci-as.”

  — Alto lá! Alto lá! disse eu. Isso estará tudo muito bem, mas há uma cousa que V. não viu. As condições do seu processo eram, como V. provou, não só criar liberdade, mas também não criar tirania. Ora V. criou tirania. V. como açambarcador, como banqueiro, como financeiro sem escrúpulos—V. desculpe, mas V. é que disse—V. criou tirania. V. criou tanta tirania como qualquer outro representante das ficções sociais, que V. diz que combate.

  — Não, meu velho, V. engana-se. Eu não criei tirania. A tirania, que pode ter resultado da minha ação de combate contra as ficções sociais, é uma tirania que não parte de mim, que portanto eu não criei; está nas ficções sociais, eu não ajuntei a elas. Essa tirania é a própria tirania das ficções sociais; e eu não podia, nem me propus, destruir as ficções sociais. Pela centésima vez lhe repito: só a revolução social pode destruir as ficções sociais; antes disso, a ação anarquista perfeita, como a minha, só pode subjugar as ficções sociais, subjugá-las em relação só ao anarquista que põe esse processo em prática, porque esse processo não permite uma mais larga sujeição dessas ficções. Não é de não criar tirania que se trata: é de não criar tirania nova, tirania onde não estava. Os anarquistas, trabalhando em conjunto, influenciando-se uns aos outros como eu lhe disse, criam entre si, fora e à parte das ficções sociais, uma tirania; essa é que é uma tirania nova. Essa, eu não a criei. Não a podia mesmo criar, pelas próprias condições do meu processo. Não, meu amigo; eu só criei liberdade. Libertei um. Libertei-me a mim. É que o meu processo, que é, como lhe provei, o único verdadeiro processo anarquista, me não permitiu libertar mais. O que pude libertar, libertei.

  — Está bem … Concordo … Mas olhe que, por esse argumento, a gente quase que é levado a crer que nenhum representante das ficções sociais exerce a tirania …

  — E não exerce. A tirania é das ficções sociais e não dos homens que as encarnam; esses são, por assim dizer, os meios de que as ficções se servem para tiranizar, como a faca é o meio que se pode servir o assassino. E V. decerto não julga que abolindo as facas abole os assassinos … Olhe … Destrua V. todos os capitalistas do mundo, mas sem destruir o capital … No dia seguinte o capital, já nas mãos de outros, continuará, por meio desses, a sua tirania. Destrua, não os capitalistas, mas o capital; quantos capitalistas ficam? … Vê? …

  — Sim; V. tem razão.

  — Ó filho, o máximo, o máximo, o máximo que V. me pode acusar de fazer é de aumentar um pouco—muito, muito pouco—a tirania das ficções sociais. O argumento é absurdo, porque como já lhe disse, a tirania que eu não devia criar, e não criei, é outra. Mas tem mais um ponto fraco: é que, pelo mesmo raciocínio, V. pode acusar um general, que trava combate pelo seu país, de causar ao seu país o prejuízo do número de homens do seu próprio exercito que teve que sacrificar para vencer. Quem vai à guerra, dá e leva. Consiga-se o principal; o resto …

  — Está muito bem … Mas olhe lá outra coisa … O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si, mas também para os outros … Parece-me que quer a liberdade para a humanidade inteira …

  — Sem dûvida. Mas eu já lhe disse que, pelo processo que descobri que era o único processo anarquista, cada um tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a mim; fiz o meu dever simultaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque é que os outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que teria sido o crime, se os tivesse impedido. Mas eu nem sequer os impedi ocultando-lhes o verdadeiro processo anarquista; logo que descobri o processo, disse-o claramente a todos. O próprio processo me impedia de fazer mais. Que mais podia fazer? Compeli-los a seguir o caminho? Mesmo que o pudesse fazer, não o faria, porque seria tirar-lhes a liberdade, e isso era contra os meus princípios anarquistas. Auxiliá-los? Também não podia ser, pela mesma razão. Eu nunca ajudei, nem ajudo, ninguém, porque isso, sendo diminuir a liberdade alheia, é também contra os meus princípios. V. o que me está censurando é eu não ser mais gente que uma pessoa só. Porque me censura o cumprimento do meu dever de libertar, até onde eu o podia cumprir? Porque não os censura antes a eles por não terem cumprido o deles?

  — Pois sim, homem. Mas esses homens não fizeram o que V. fez, naturalmente, porque eram menos inteligentes que V., ou menos fortes de vontade, ou …

  — Ah, meu amigo: essas são já as desigualdades naturais, e não sociais … Com essas é que o anarquismo não tem nada. O grau de inteligência ou de vontade de um indivíduo é com ele e com a Natureza; as próprias ficções sociais não põem para aí nem prego nem estopa. Há qualidade naturais, como eu já lhe disse, que se pode presumir que sejam pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções sociais; mas a perversão não está no grau da qualidade, que é absolutamente dado pela Natureza, mas na aplicação da qualidade. Ora uma questão de estupidez ou de falta de vontade não tem que ver com a aplicação dessas qualidade, mas só com o grau delas. Por isso lhe digo: essas são já absolutamente as desigualdades naturais, e sobre essas ninguém tem poder nenhum, nem há modificação social que a modifique, como não me pode tornar a mim alto ou a V. baixo …

  “A não ser … A não ser que, no caso desses tipos, a perversão hereditária das qualidades naturais vá tão longe que atinja o próprio fundo do temperamento … Sim, que um tipo nasça para escravo, nasça naturalmente escravo, e portanto incapaz de qualquer esforço no sentido de se libertar … Mas nesse caso …, nesse caso …, que têm eles que ver com a sociedade livre, ou com a liberdade? … Se um homem nasceu para escravo, a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania.”

  Houve uma pequena pausa. De repente ria alto.

  — Realmente, disse eu, V. é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter ouvido, compara o que V. é com o que são os anarquistas que para aí há …

  — Meu amigo, eu já lho disse, já lho provei, e agora repitolho … A diferença é só esta: eles são anarquistas só teóricos, eu sou teórico e prático; eles são anarquistas místicos, e eu científico; eles são anarquistas que se agacham, eu sou um anarquista que combate e liberta … Em uma palavra: eles são pseudo-anarquistas, e eu sou anarquista.

  E levantamo-nos da mesa.

  Lisboa, Janeiro de 1922.

  About the Translator

  RICHARD SCHAIN first encountered the writings of Fernando Pessoa in Spanish translation in the 1980s. He was so intrigued
by Pessoa that he taught himself Portuguese in order to read (and reread) him in the original. The translation of O Banquiero Anarchista occurred after he found it in a rare copy of Contemporânea in a Lisbon bookstore.

  Richard Schain obtained A.B. (philosophy) and M.D. degrees from New York University. He trained in neurology at the Yale Medical Center, later serving as professor of neurology and psychiatry at the University of California, Los Angeles. He embarked on the life of an independent philosopher in 1980. Selected philosophical publications of his are Affirmations of Reality (1982), Fanatic of the Mind (1997), The Legend of Nietzsche’s Syphilis (2001), Radical Metaphysics (2002), Interior Lights (2012), Toward an Existential Philosophy of the Soul (2014), and Landesman’s Journal (2016). The full list can be found at www.schainphilo.com.

  Schain divides his time with his wife Melanie Dreisbach between Alamos, Sonora, Mexico and Sonoita, Arizona, USA.

 

 

 


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