ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.
As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,
e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,
e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)
Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.
E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.
Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, aonde, quando?
seria indiferente ou solidária?
Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua ama preta.
Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:
uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,
mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo
comprada em sal, em rugas e cabelo.
VERSES ON THE BRINK OF EVENING
I feel time’s heavy hand weigh down
on me. Wrinkles, bad teeth, baldness …
A greater acceptance of everything,
and the fear of new discoveries.
Will I write sonnets that they call “mature”?
Will I convey an illusion of calm?
Will I always be nutty? Always a liar?
Will I mock the world? Believe in myths?
For a long time I’ve felt the old man in me.
He began to harass me in childhood.
Today I’m alone. No little boy
jumps out of my life to restore it.
But if I could start the day all over!
Dust off my adoration, my shout,
my hunger … To me all things look
impossible and clear-cut, in space.
O explanation of my life,
you’ve remained, among stern idols,
beyond the pale of my irony,
like an object lost on the street.
My experiences have multiplied:
journeys, thefts, deep solitudes,
despair (today cold crystal),
melancholy (cherished and resisted),
and so much indecision between
two seas, two women, two items of clothing.
This entire hand to trace a gesture
so feeble it never takes shape,
it languishes, a zone of desire
sealed off by hostile shrubs …
(A man looks at himself without love,
undresses with no curiosity.)
But time and the idea of the past
surprise you in the curve of a garden.
Remembrance comes, it wells up
without warning in the movie theater.
And the memories stream from your neck,
from your jacket, the war, the rainbow;
they take root in your sleep and hound you,
in search of a lens to reflect them.
And after those memories, time
arrives with a new batch of memories,
until you’re so weary you balk
and don’t know if life is or was.
Is this house that grabs your attention
in Acre? In Argentina? In you?
What word did you hear, and where, when?
Was it indifferent or heartfelt?
A piece of you breaks out of the mist,
flying perhaps to Bahia, while other
pieces vanish into the atlas,
the Country of Laughter, and your black nanny.
What a jumble of things at twilight!
What a treasure! Useless, it’s true.
Oh, if all those things could be arranged
into a well-reasoned yet sensitive whole:
an order, a light, a happiness
settling on the ravaged breast …
Not the passion of the twenty-year-old
nor renunciation of the things he chose,
but penetration into yielding wood,
an effortless plunging into a pool,
a painless discovery, a fusion, something
like an intelligence of the universe
purchased with salt, wrinkles, and hair.
RETRATO DE FAMÍLIA
Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.
No semicírculo das cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.
A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam — se preciso — voar.
Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis
ou no bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de família
viajando através da carne.
FAMILY PORTRAIT
This family portrait is looking
dusty. You can no longer see,
in my father’s face, how much
money
he managed to make.
The travels of my two uncles
aren’t apparent in their hands.
No memory’s left of the monarchy
in Grandma, smoothed and yellowed.
The boys, how they’ve changed.
Pedro’s face is peaceful,
reflecting only good dreams.
And João is no longer a liar.
The garden has become surreal.
The flowers are gray disks.
And the sand, under deceased
feet, is a sea of fog.
In the semicircle of chairs
some movement can be noted.
The kids are trading places,
but without a sound: it’s a photo.
Twenty years is a long time,
enough to rework any image.
If one figure slowly fades,
another asserts itself, smiling.
Those strangers sitting there
are my relatives? I don’t believe it.
They’re visitors having fun
in a living room rarely used.
Certain family traits
have survived in their bodily
postures, enough to suggest
that a body is full of surprises.
In vain the frame encases
the people in this portrait.
They are there voluntarily
and could fly away, if necessary.
They could dissipate into
the room’s chiaroscuro,
or go live in the nooks of furniture
or in the pockets of old vests.
The house has lots of drawers
and papers, long flights of stairs.
What sort of trick might things,
bored with matter, resort to?
The portrait doesn’t answer.
It stares at me and observes
itself in my dusty eyes.
My dead and living relatives
proliferate in the glass.
I’ve lost track of who went,
who stays. All I grasp
is the strange idea of family
moving through the flesh.
MOVIMENTO DA ESPADA
Estamos quites, irmão vingador.
Desceu a espada
e cortou o braço.
Cá está ele, molhado em rubro.
Dói o ombro, mas sobre o ombro
tua justiça resplandece.
Já podes sorrir, tua boca
moldar-se em beijo de amor.
Beijo-te, irmão, minha dívida
está paga.
Fizemos as contas, estamos alegres.
Tua lâmina corta, mas é doce,
a carne sente, mas limpa-se.
O sol eterno brilha de novo
e seca a ferida.
Mutilado, mas quanto movimento
em mim procura ordem.
O que perdi se multiplica
e uma pobreza feita de pérolas
salva o tempo, resgata a noite.
Irmão, saber que és irmão,
na carne como nos domingos.
Rolaremos juntos pelo mar …
Agasalhado em tua vingança,
puro e imparcial como um cadáver que o ar embalsamasse,
serei carga jogada às ondas,
mas as ondas, também elas, secam,
e o sol brilha sempre.
Sobre minha mesa, sobre minha cova, como brilha o sol!
Obrigado, irmão, pelo sol que me deste,
na aparência roubando-o.
Já não posso classificar os bens preciosos.
Tudo é precioso …
e tranquilo
como olhos guardados nas pálpebras.
SWIPE OF THE SWORD
We’re even, brother, you got your revenge.
Down came the sword
and off came my arm.
Here it is, dripping red.
My shoulder hurts, but upon it
your justice gleams.
Now you can smile, molding your lips
into a loving kiss.
I kiss you, brother,
my debt is paid.
We’ve settled accounts, we’re happy.
Your blade cuts but is sweet,
my flesh aches but will heal.
The eternal sun shines again
and dries the wound.
I’m mutilated, yes, but so much
movement in me seeks order.
What I’ve lost is multiplied,
and a poverty made of pearls
redeems time, saves the night.
Now I know you’re a brother,
in the flesh as well as on Sundays.
We’ll roll together in the sea …
Wrapped in your revenge,
pure and impartial as a corpse embalmed by air,
I’ll be cargo tossed to the waves,
but the waves dry up too,
and the sun always shines.
On my table, on my grave, how the sun shines!
Thank you, brother, for the sun you gave me
when it seemed you were taking it away.
I can no longer classify precious things.
Everything is precious …
and peaceful
like eyes ensconced behind eyelids.
ROLA MUNDO
Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.
Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.
Vi o sapo saltando
uma altura de morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.
Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.
Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.
Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolv
er os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi; já não quero ver.
E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de voo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas …
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.
Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rola os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!
ROLL, WORLD, ROLL
I saw girls shouting
in a thunderstorm.
What they were saying
the wind blew away,
then back again.
Alarmed, I listened
but understood nothing.
Perhaps they announced
that youth is dead.
But the rain, but the crying,
but the crashing cascade
were a torment to me
beneath the dark sky,
and while seeing it all,
I still couldn’t see.
I saw girls dancing
a dance of pure air.
I saw their soft bodies
becoming violent things
strummed by the wind.
I ran in the wind:
there was only wetness,
whooshing, and the taste
of salt.
The wind in my mouth
stirred up a sadness
that few of my loves
have ever aroused,
and its gusting
tore me up inside.
I saw a toad jumping
high as a hill,
and it carried away
what most mattered to me.
A meek and velvety,
hideous creature,
it seemed to steal
in its clammy coldness
an old medal of mine
where your echo sleeps,
a medal it would later
give back, but too late,
and corroded by drool.
I saw other riddles
like so many flowers
abloom in the void.
I saw skirts glide by
in search of bodies
disappearing in gas,
and so, without wearers,
they fluttered all the more,
Multitudinous Heart Page 7