Multitudinous Heart

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Multitudinous Heart Page 8

by Carlos Drummond de Andrade


  until they turned purple,

  blue from much waiting,

  black from black seas.

  And they kept on drifting.

  Calmly, for a long time

  or no time — I don’t remember.

  I saw a girl’s heart

  forgotten in a cage.

  Just lion’s dung,

  and the circus long gone.

  I saw forbidden times,

  from yesterday and always,

  and each land had its wall

  made of stone and dread,

  and perched on that wall

  was a blind dove.

  So how do we interpret

  what heroes don’t say?

  How do we cross oceans

  if we’re free to sail

  but not to build boats?

  Walls are erected, poems

  written, coins of rain minted,

  lighthouses inspected

  to make sure they won’t flash,

  and if corpses protest,

  they’re returned to the sea.

  I’ve seen it, and seen enough.

  I’ve seen my whole life

  compressed into an insect:

  its complicated instruments

  for flying and hibernating,

  its humming anger,

  its weak elytrons beating,

  its shine like a sunset,

  and its filthy feet …

  I threw everything down the sewer.

  Rubber scraps

  and

  the smell of burnt cork:

  that’s all that links me to the world.

  Other hidden riches

  have crumbled, farewell, to nothing.

  After so many visions,

  it’s too late to wonder

  if we ought to toss out

  our eyes and our glasses.

  And if our desire to see

  should also be extinguished,

  and our visions intercepted,

  and all the rest abolished.

  Ah, let the world exist!

  Irreducible to song,

  superior to poetry,

  roll, world, roll,

  roll this drama, roll the body,

  roll our million words

  at top speed,

  and roll me, roll my breast,

  roll the gods, the nations,

  disintegrate, explode, and cease!

  CASO DO VESTIDO

  Nossa mãe, o que é aquele

  vestido, naquele prego?

  Minhas filhas, é o vestido

  de uma dona que passou.

  Passou quando, nossa mãe?

  Era nossa conhecida?

  Minhas filhas, boca presa.

  Vosso pai evém chegando.

  Nossa mãe, dizei depressa

  que vestido é esse vestido.

  Minhas filhas, mas o corpo

  ficou frio e não o veste.

  O vestido, nesse prego,

  está morto, sossegado.

  Nossa mãe, esse vestido

  tanta renda, esse segredo!

  Minhas filhas, escutai

  palavras de minha boca.

  Era uma dona de longe,

  vosso pai enamorou-se.

  E ficou tão transtornado,

  se perdeu tanto de nós,

  se afastou de toda vida,

  se fechou, se devorou,

  chorou no prato de carne,

  bebeu, brigou, me bateu,

  me deixou com vosso berço,

  foi para a dona de longe,

  mas a dona não ligou.

  Em vão o pai implorou.

  Dava apólice, fazenda,

  dava carro, dava ouro,

  beberia seu sobejo,

  lamberia seu sapato.

  Mas a dona nem ligou.

  Então vosso pai, irado,

  me pediu que lhe pedisse,

  a essa dona tão perversa,

  que tivesse paciência

  e fosse dormir com ele …

  Nossa mãe, por que chorais?

  Nosso lenço vos cedemos.

  Minhas filhas, vosso pai

  chega ao pátio. Disfarcemos.

  Nossa mãe, não escutamos

  pisar de pé no degrau.

  Minhas filhas, procurei

  aquela mulher do demo.

  E lhe roguei que aplacasse

  de meu marido a vontade.

  Eu não amo teu marido,

  me falou ela se rindo.

  Mas posso ficar com ele

  se a senhora fizer gosto,

  só pra lhe satisfazer,

  não por mim, não quero homem.

  Olhei para vosso pai,

  os olhos dele pediam.

  Olhei para a dona ruim,

  os olhos dela gozavam.

  O seu vestido de renda,

  de colo mui devassado,

  mais mostrava que escondia

  as partes da pecadora.

  Eu fiz meu pelo-sinal,

  me curvei … disse que sim.

  Saí pensando na morte,

  mas a morte não chegava.

  Andei pelas cinco ruas,

  passei ponte, passei rio,

  visitei vossos parentes,

  não comia, não falava,

  tive uma febre terçã,

  mas a morte não chegava.

  Fiquei fora de perigo,

  fiquei de cabeça branca,

  perdi meus dentes, meus olhos,

  costurei, lavei, fiz doce,

  minhas mãos se escalavraram,

  meus anéis se dispersaram,

  minha corrente de ouro

  pagou conta de farmácia.

  Vosso pai sumiu no mundo.

  O mundo é grande e pequeno.

  Um dia a dona soberba

  me aparece já sem nada,

  pobre, desfeita, mofina,

  com sua trouxa na mão.

  Dona, me disse baixinho,

  não te dou vosso marido,

  que não sei onde ele anda.

  Mas te dou este vestido,

  última peça de luxo

  que guardei como lembrança

  daquele dia de cobra,

  da maior humilhação.

  Eu não tinha amor por ele,

  ao depois amor pegou.

  Mas então ele enjoado

  confessou que só gostava

  de mim como eu era dantes.

  Me joguei a suas plantas,

  fiz toda sorte de dengo,

  no chão rocei minha cara,

  me puxei pelos cabelos,

  me lancei na correnteza,

  me cortei de canivete,

  me atirei no sumidouro,

  bebi fel e gasolina,

  rezei duzentas novenas,

  dona, de nada valeu:

  vosso marido sumiu.

  Aqui trago minha roupa

  que recorda meu malfeito

  de ofender dona casada

  pisando no seu orgulho.

  Recebei esse vestido

  e me dai vosso perdão.

  Olhei para a cara dela,

  quede os olhos cintilantes?

  quede graça de sorriso,

  quede colo de camélia?

  quede aquela cinturinha

  delgada como jeitosa?

  quede pezinhos calçados

  com sandálias de cetim?

  Olhei muito para ela,

  boca não disse palavra.

  Peguei o vestido, pus

  nesse prego da parede.

  Ela se foi de mansinho

  e já na ponta da estrada

  vosso pai aparecia.

  Olhou pra mim em silêncio,

  mal reparou no vestido

  e disse apenas: Mulher,

  põe mais um prato na mesa.

  Eu fiz, ele se assentou,

  comeu, limpou o suor,

  era sempre o mesmo homem,

  comia meio de lado

  e nem estava mais velho.

  O barulho da comida />
  na boca, me acalentava,

  me dava uma grande paz,

  um sentimento esquisito

  de que tudo foi um sonho,

  vestido não há … nem nada.

  Minhas filhas, eis que ouço

  vosso pai subindo a escada.

  STORY OF THE DRESS

  Mother, whose dress is that,

  hanging on that nail?

  Daughters, that’s the dress

  of a woman who passed.

  When did she pass, Mother?

  Was she someone we knew?

  Daughters, be still,

  your father’s almost here.

  Mother, tell us quickly

  whose dress is that dress.

  Dear daughters, the body

  that wore it is cold.

  That dress, on that nail,

  is dead, in peace.

  Dear mother, that dress,

  so much lace, that secret!

  Dear daughters, listen

  to the words from my lips.

  Your father fell in love

  with a woman from far away.

  And he so lost his senses

  that he forgot all about us,

  forgot about all life,

  closed up, consumed himself.

  He cried on his plate of meat,

  he drank, he quarreled and beat me,

  and he left me with your cradle

  for the woman from far away,

  but the woman was indifferent.

  In vain your father implored.

  He’d give her a farm, a car,

  his life insurance, gold,

  he’d drink her dregs,

  he’d lick her shoes.

  But the woman was indifferent.

  And so your father, enraged,

  asked me to ask her,

  that perverse woman,

  if she would be forbearing

  and go to bed with him …

  Mother, why are you crying?

  Take our handkerchief.

  Daughters, let’s act normal,

  your father’s in the courtyard.

  Mother, we don’t hear

  any feet on the stairs.

  Daughters, I went and found

  that woman of the devil.

  And I begged her to quench

  my husband’s desire.

  I don’t love your husband,

  she said to me, laughing,

  but if it’s your wish,

  I can stay with him,

  to please you, not me,

  as I don’t want a man.

  I looked at your father,

  whose eyes were pleading.

  I looked at the vile woman,

  whose eyes were smirking.

  Her fancy lace dress,

  with its neck cut very low,

  showed more than it hid

  of that sinner woman’s body.

  I crossed myself,

  I bowed … said yes.

  I left thinking of death,

  but death didn’t come.

  I walked the five streets,

  I crossed the bridge, the river,

  I went to see your relatives,

  I didn’t eat or talk,

  I caught a malarial fever,

  but death didn’t come.

  My life was out of danger,

  my hair turned white,

  I lost my teeth, my eyesight,

  I sewed, washed clothes, made sweets,

  my hands turned red and raw,

  I gave up all my rings,

  my gold chain paid

  the pharmacy bill.

  Your father was lost in the world.

  The world is large and small.

  One day the haughty woman

  showed up with nothing to show,

  poor, broken, hapless,

  her bundle in her hand.

  Madam, she said softly,

  your husband I can’t give you,

  I don’t know where he is.

  But I’m giving you this dress,

  my last piece of finery,

  which I kept as a reminder

  of that day of the serpent,

  that great humiliation.

  At first I didn’t love him,

  love came to me later.

  But then he lost all interest,

  admitting he only liked me

  the way I was before.

  I threw myself at his feet,

  used every charm I knew,

  rubbed my face in the ground,

  pulled on my hair,

  jumped into the stream,

  cut myself with a penknife,

  hurled myself into the sewer,

  drank gall and gasoline,

  prayed two hundred novenas,

  all in vain. Your husband,

  madam, has vanished.

  Here’s the piece of clothing

  that recalls my wrongful deed

  of demeaning a married woman

  by trampling her pride.

  Take from me this dress

  and grant me your forgiveness.

  I looked into her face:

  where were the sparkling eyes?

  where the alluring smile?

  where the camellia collar?

  where that dainty waist

  as shapely as it was slim?

  where the tiny feet

  with satin sandals?

  I looked at her intently,

  my lips said not a word.

  I took the dress and hung it

  on that nail in the wall.

  She quietly snuck away,

  and coming down the road

  I already saw your father.

  He looked at me in silence,

  barely noticed the dress,

  and said only: Wife,

  put one more plate on the table.

  I did so, he sat down,

  ate, and wiped his sweat.

  He was the very same man,

  eating half-turned in his chair,

  and he hadn’t even aged.

  The sound of the food

  in his mouth soothed me,

  gave me great peace,

  a very strange feeling

  that this was all a dream,

  there is no dress … no nothing.

  Enough, dear daughters, I hear

  your father climbing the stairs.

  VIDA MENOR

  A fuga do real,

  ainda mais longe a fuga do feérico,

  mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,

  a fuga da fuga, o exílio

  sem água e palavra, a perda

  voluntária de amor e memória,

  o eco

  já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,

  a mão tornando-se enorme e desaparecendo

  desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,

  senão inúteis,

  a desnecessidade do canto, a limpeza

  da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.

  Não a morte, contudo.

  Mas a vida: captada em sua forma irredutível,

  já sem ornato ou comentário melódico,

  vida a que aspiramos como paz no cansaço

  (não a morte),

  vida mínima, essencial; um início; um sono;

  menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;

  o que se possa desejar de menos cruel: vida

  em que o ar, não respirado, mas me envolva;

  nenhum gasto de tecidos; ausência deles;

  confusão entre manhã e tarde, já sem dor,

  porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo

  elidido, domado.

  Não o morto nem o eterno ou o divino,

  apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente

  e solitário vivo.

  Isso eu procuro.

  LESSER LIFE

  Flight from reality.

  Farther still: flight from fantasy.

  Fart
her than anything: flight from oneself,

  flight from flight, exile

  without water or words, the voluntary

  loss of love and memory,

  the echo

  no longer linked to the call, and the call getting slurred,

  the hand larger and larger, shapeless,

  gone, all gestures finally impossible,

  if not futile,

  the song gratuitous, color cleansed

  of all color, with no arm moving or fingernail growing.

  But not death.

  Life, in its irreducible form,

  without embellishment or melodic commentary,

  life aspired to like peace when we’re weary

  (not death),

  minimal, essential life; a beginning; a sleep;

  less than earth, without warmth; without science or irony;

  the least cruel thing we can desire: life

  in which air isn’t breathed, but let it wrap me;

  no wearing down of tissues; absence of tissues;

  confusion between morning and afternoon, with no more pain,

  since time’s no longer sectioned off; time

  elided, subdued.

  Not what’s dead or eternal or divine,

  just what lives: tiny, quiet, indifferent,

  solitary life.

  That’s what I seek.

  RESÍDUO

  De tudo ficou um pouco.

  Do meu medo. Do teu asco.

  Dos gritos gagos. Da rosa

  ficou um pouco.

  Ficou um pouco de luz

  captada no chapéu.

  Nos olhos do rufião

  de ternura ficou um pouco

  (muito pouco).

  Pouco ficou deste pó

  de que teu branco sapato

  se cobriu. Ficaram poucas

  roupas, poucos véus rotos,

  pouco, pouco, muito pouco.

  Mas de tudo fica um pouco.

  Da ponte bombardeada,

  de duas folhas de grama,

  do maço

  — vazio — de cigarros, ficou um pouco.

  Pois de tudo fica um pouco.

  Fica um pouco de teu queixo

  no queixo de tua filha.

  De teu áspero silêncio

  um pouco ficou, um pouco

  nos muros zangados,

  nas folhas, mudas, que sobem.

  Ficou um pouco de tudo

  no pires de porcelana,

  dragão partido, flor branca,

  ficou um pouco

  de ruga na vossa testa,

  retrato.

  Se de tudo fica um pouco,

  mas por que não ficaria

  um pouco de mim? no trem

  que leva ao norte, no barco,

  nos anúncios de jornal,

  um pouco de mim em Londres,

  um pouco de mim algures?

  na consoante?

  no poço?

  Um pouco fica oscilando

  na embocadura dos rios

  e os peixes não o evitam,

  um pouco: não está nos livros.

  De tudo fica um pouco.

  Não muito: de uma torneira

  pinga esta gota absurda,

  meio sal e meio álcool,

  salta esta perna de rã,

  este vidro de relógio

 

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