Book Read Free

Multitudinous Heart

Page 9

by Carlos Drummond de Andrade


  partido em mil esperanças,

  este pescoço de cisne,

  este segredo infantil …

  De tudo ficou um pouco:

  de mim; de ti; de Abelardo.

  Cabelo na minha manga,

  de tudo ficou um pouco;

  vento nas orelhas minhas,

  simplório arroto, gemido

  de víscera inconformada,

  e minúsculos artefatos:

  campânula, alvéolo, cápsula

  de revólver … de aspirina.

  De tudo ficou um pouco.

  E de tudo fica um pouco.

  Oh abre os vidros de loção

  e abafa

  o insuportável mau cheiro da memória.

  Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

  e sob as ondas ritmadas

  e sob as nuvens e os ventos

  e sob as pontes e sob os túneis

  e sob as labaredas e sob o sarcasmo

  e sob a gosma e sob o vômito

  e sob o soluço, o cárcere, o esquecido

  e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate

  e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

  e sob tu mesmo e sob teus pés já duros

  e sob os gonzos da família e da classe,

  fica sempre um pouco de tudo.

  Às vezes um botão. Às vezes um rato.

  RESIDUE

  A little of everything remained.

  Of my fear. Of your disgust.

  Of stuttered cries. Of the rose

  a little remained.

  A little of the light glancing

  off the hat remained.

  A little (just a little)

  of kindness remained

  in the scoundrel’s eyes.

  Little remained of the dust

  that covered your white

  shoes. A little clothing,

  a few tattered veils, a little,

  just a little, very little remained.

  But a little of everything remains.

  Of the bombed bridge,

  of two blades of grass,

  of the empty pack

  of cigarettes a little remained.

  Because a little of everything

  remains: a little of your chin

  in the chin of your daughter,

  a little of your harsh silence

  in the angry walls,

  in the speechless,

  climbing leaves.

  A little of everything remained

  in the porcelain saucer,

  a cracked dragon, a white flower.

  A few lines in your forehead,

  a photo

  remained.

  If a little of everything remains,

  why won’t a little of me

  remain? In the train

  for the north, in the boat,

  in newspaper ads?

  A little of me in London,

  a little of me somewhere?

  In that consonant …

  In that well …

  A little remains tossing

  in the mouths of rivers,

  and the fish don’t scorn it:

  a little that isn’t in books.

  A little of everything remains.

  Not much: this absurd

  drip from a faucet,

  half salt, half alcohol,

  this frog’s leg jumping,

  this watch crystal shattered

  into a thousand hopes,

  this swan’s neck,

  this childhood secret …

  A little of everything remained:

  of me, of you, of Abelard.

  Hair on my sleeve,

  a little of everything remained;

  wind in my ears,

  a silly burp, a groan

  from a disgruntled bowel,

  and minuscule artifacts:

  bell jar, honeycomb, a bullet

  casing, an aspirin capsule.

  A little of everything remained.

  And a little of everything remains.

  Oh open these jars of lotion

  and smother

  the unbearable stench of memory.

  But a little of everything terribly remains.

  Under the breaking waves,

  under the clouds and winds,

  under bridges and under tunnels,

  under flames and under sarcasm,

  under slobber and under vomit,

  under the sob, the jail, the forgotten,

  under gala shows and scarlet deaths,

  under libraries, asylums, and triumphant churches,

  under you yourself and your crusty feet,

  under the hinges of class and of family

  a little of everything always remains.

  Sometimes a button. Sometimes a rat.

  OS ÚLTIMOS DIAS

  Que a terra há de comer.

  Mas não coma já.

  Ainda se mova,

  para o ofício e a posse.

  E veja alguns sítios

  antigos, outros inéditos.

  Sinta frio, calor, cansaço;

  pare um momento; continue.

  Descubra em seu movimento

  forças não sabidas, contatos.

  O prazer de estender-se; o de

  enrolar-se, ficar inerte.

  Prazer de balanço, prazer de voo.

  Prazer de ouvir música;

  sobre papel deixar que a mão deslize.

  Irredutível prazer dos olhos;

  certas cores: como se desfazem, como aderem;

  certos objetos, diferentes a uma luz nova.

  Que ainda sinta cheiro de fruta,

  de terra na chuva, que pegue,

  que imagine e grave, que lembre.

  O tempo de conhecer mais algumas pessoas,

  de aprender como vivem, de ajudá-las.

  De ver passar este conto: o vento

  balançando a folha; a sombra

  da árvore, parada um instante,

  alongando-se com o sol, e desfazendo-se

  numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

  E de olhar esta folha, se cai.

  Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

  Tem na certa um cheiro, particular entre mil.

  Um desenho, que se produzirá ao infinito,

  e cada folha é uma diferente.

  E cada instante é diferente, e cada

  homem é diferente, e somos todos iguais.

  No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra

  o silêncio global, mas não seja logo.

  Antes dele outros silêncios penetrem,

  outras solidões derrubem ou acalentem

  meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um torso

  de mil anos, recebe minha visita, prolonga

  para trás meu sopro, igual a mim

  na calma, não importa o mármore, completa-me.

  O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz

  da vida ficou mais forte, e os naufrágios

  não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas:

  que os objetos continuam, e a trepidação incessante

  não desfigurou o rosto dos homens;

  que somos todos irmãos, insisto.

  Em minha falta de recursos para dominar o fim,

  entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,

  tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,

  tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

  E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar

  partida menos imediata. Ah, podeis rir também,

  não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,

  de outros virem depois, de todos sermos irmãos,

  no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime

  cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

  O tempo de despedir-me e contar

  que não espero outra luz al�
�m da que nos envolveu

  dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,

  pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,

  estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,

  mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo

  é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

  A doença não me intimide, que ela não possa

  chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.

  Uma parte de mim sofre, outra pede amor,

  outra viaja, outra discute, uma última trabalha,

  sou todas as comunicações, como posso ser triste?

  A tristeza não me liquide, mas venha também

  na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,

  que lute lealmente com sua presa,

  e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,

  ao fim da batalha perdida.

  Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,

  nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.

  E todo o mel dos domingos se tire;

  o diamante dos sábados, a rosa

  de terça, a luz de quinta, a mágica

  de horas matinais, que nós mesmos elegemos

  para nossa pessoal despesa, essa parte secreta

  de cada um de nós, no tempo.

  E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,

  submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor

  rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,

  mas não a quero negando as outras horas nem as palavras

  ditas antes com voz firme, os pensamentos

  maduramente pensados, os atos

  que atrás de si deixaram situações.

  Que o riso sem boca não a aterrorize

  e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,

  dedos torcidos, lívido

  suor de remorso.

  E a matéria se veja acabar: adeus, composição

  que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.

  Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,

  meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,

  sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, ideia de justiça, revolta e sono, adeus,

  vida aos outros legada.

  THE LAST DAYS

  And the earth will swallow us.

  But not yet, not yet.

  Keep on moving,

  keep producing and possessing.

  See some old places,

  visit some new ones.

  Feel the cold, the heat, fatigue.

  Stop for a moment; continue.

  Discover in your movements

  unknown forces, connections.

  The pleasure of stretching; the pleasure

  of crouching, holding still.

  Pleasure of balancing, pleasure of flying.

  Pleasure of hearing music;

  letting your hand slide over the paper.

  The inviolable pleasure of seeing;

  certain colors: how they dissolve, how they adhere;

  certain objects, different in a new light.

  Keep on inhaling the fragrance of fruit

  and rain-spattered earth, keep grabbing,

  imagining, and recording, keep remembering.

  A little more time! To meet a few more people.

  To learn how they live, to help them.

  To watch this story take place: the wind

  shakes the leaf; the tree’s shadow,

  stock-still for an instant, lengthens

  with the sun, and disperses

  in a greater shadow, on a road without traffic.

  To look at this leaf, if it falls.

  And to catch it in its fall. So dry, so warm.

  Surely it has a smell, its own among a thousand.

  A pattern, to be endlessly repeated,

  and each is a different leaf.

  And each moment is different, and each man

  is different, and we are all equal.

  In the same womb the primal darkness, and over the same earth

  a worldwide silence, but not yet, not yet.

  Let other silences fill me before that one,

  let other solitudes crush or lull

  my breast; the silence of lingering before this statue:

  a thousand-year-old torso, it receives my visit, prolongs

  toward the past my breath, is equal to me

  in its calm and, despite being marble, completes me.

  Time enough to remark that some errors have fallen, life’s root

  has grown stronger, and the shipwrecks

  have not severed that underground link between people and things.

  Yes, objects persist, and relentless trepidation

  has not disfigured the face of men;

  yes, I insist, we are all brothers.

  In my lack of resources to overcome the end

  I still feel I’m vast, I’m as large as a child, as tall as a tower,

  as long as time, which keeps adding on the centuries and makes us dizzy,

  as large as any João I know, for we are all brothers.

  And the sadness of leaving my brothers makes me want

  to put off my departure. Ah, you can also laugh,

  not at the dissolution but because some try to stop it,

  because others will come, because we are all brothers,

  in hate, in love, in not understanding, and in the everyday

  sublime, everything, yes everything, is our brother.

  Time enough to say farewell and confess

  I expect no light beyond the one that has wrapped us

  day after day, night following night, a flickering wick,

  a small bright bulb, a torch, lantern, spark,

  clustered stars, forest fire, sun on the waves,

  for that light is enough, life is enough, and time

  is a good measure, brothers, let’s live our time.

  May sickness not scare me, nor ever reach

  the point in man where all is explained.

  One part of me suffers, another asks for love,

  another travels, another argues, still another works,

  I’m all forms of communicating, how can I be sad?

  May sadness not slay me, but let it come too

  on the rainy night, on the muddy road, at the bar shutting down,

  let it faithfully struggle with its prey,

  and recognize the day dawning in bursts of confidence, amnesia, and love

  at the end of its lost battle.

  May this and no other time fill the living room, bathe the books,

  filter into our pockets and the dishes, with a dingy or a potent glimmer.

  And may all the honey of Sundays perish when it must,

  and the diamond of Saturdays, the rose

  of Tuesdays, the light of Thursdays, the magical

  early morning hours, which we reserved

  for our personal use, that secret part

  of each one of us, in time.

  And may the approaching hour not be vile, stained with fear,

  submission, or calculation. I know an element of pain

  gnaws at its base. It will be grim, unyielding, bleak,

  but I don’t want it to negate other hours or words

  one day uttered with a firm voice, thoughts

  maturely thought out, acts

  that left situations in their wake.

  May it not shrink in terror at the mouthless laughter

  nor be reduced to entreaties, twisted

  fingers, or the livid sweat of remorse

  before the shadow of the limestone bed.

  And may matter observe its own end: farewell, composition

  that once called itself Carlos Drummond de Andrade.

  Farewell, my presence, my gaze, and my thick veins,

  my head’s impression on t
he pillow, my shadow on the wall,

  the mole on my face, nearsighted eyes, personal effects, idea of justice, defiance, and sleepiness, farewell,

  life hereby passed on to others.

  NOVOS POEMAS / NEW POEMS (1948)

  CANÇÃO AMIGA

  Eu preparo uma canção

  em que minha mãe se reconheça,

  todas as mães se reconheçam,

  e que fale como dois olhos.

  Caminho por uma rua

  que passa em muitos países.

  Se não me veem, eu vejo

  e saúdo velhos amigos.

  Eu distribuo um segredo

  como quem ama ou sorri.

  No jeito mais natural

  dois carinhos se procuram.

  Minha vida, nossas vidas

  formam um só diamante.

  Aprendi novas palavras

  e tornei outras mais belas.

  Eu preparo uma canção

  que faça acordar os homens

  e adormecer as crianças.

  I’M MAKING A SONG

  I’m making a song

  where my mother and all mothers

  will see themselves mirrored,

  a song that speaks like two eyes.

  I’m walking on a road

  that runs through many countries.

  They may not see me, but I see

  and salute old friends.

  I’m spreading a secret

  like a man who loves or smiles.

  Affection seeks affection

  in the most natural way.

  My life, our lives,

  form a single diamond.

  I’ve learned new words

  and made others more beautiful.

  I’m making a song

  for waking up men

  and putting children to sleep.

  DESAPARECIMENTO DE LUÍSA PORTO

  Pede-se a quem souber

  do paradeiro de Luísa Porto

  avise sua residência

  à Rua Santos Óleos, 48.

  Previna urgente

  solitária mãe enferma

  entrevada há longos anos

  erma de seus cuidados.

  Pede-se a quem avistar

  Luísa Porto, de 37 anos,

  que apareça, que escreva, que mande dizer

  onde está.

  Suplica-se ao repórter-amador,

  ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,

  a qualquer do povo e da classe média,

  até mesmo aos senhores ricos,

  que tenham pena de mãe aflita

  e lhe restituam a filha volatilizada

  ou pelo menos deem informações.

  É alta, magra,

  morena, rosto penugento, dentes alvos,

  sinal de nascença junto ao olho esquerdo,

  levemente estrábica.

  Vestidinho simples. Óculos.

  Sumida há três meses.

  Mãe entrevada chamando.

 

‹ Prev