Multitudinous Heart

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Multitudinous Heart Page 10

by Carlos Drummond de Andrade

Roga-se ao povo caritativo desta cidade

  que tome em consideração um caso de família

  digno de simpatia especial.

  Luísa é de bom gênio, correta,

  meiga, trabalhadora, religiosa.

  Foi fazer compras na feira da praça.

  Não voltou.

  Levava pouco dinheiro na bolsa.

  (Procurem Luísa.)

  De ordinário não se demorava.

  (Procurem Luísa.)

  Namorado isso não tinha.

  (Procurem. Procurem.)

  Faz tanta falta.

  Se todavia não a encontrarem

  nem por isso deixem de procurar

  com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa

  e talvez encontrem.

  Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.

  Luísa ia pouco à cidade

  e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.

  Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,

  é Rita Santana, costureira, moça desimpedida,

  a qual não dá notícia nenhuma,

  limitando-se a responder: Não sei.

  O que não deixa de ser esquisito.

  Somem tantas pessoas anualmente

  numa cidade como o Rio de Janeiro

  que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.

  Uma vez, em 1898

  ou 9,

  sumiu o próprio chefe de polícia

  que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio

  e até hoje.

  A mãe de Luísa, então jovem,

  leu no Diário Mercantil,

  ficou pasma.

  O jornal embrulhado na memória.

  Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,

  a pobreza, a paralisia, o queixume

  seriam, na vida, seu lote

  e que sua única filha, afável posto que estrábica,

  se diluiria sem explicação.

  Pela última vez e em nome de Deus

  todo-poderoso e cheio de misericórdia

  procurem a moça, procurem

  essa que se chama Luísa Porto

  e é sem namorado.

  Esqueçam a luta política,

  ponham de lado preocupações comerciais,

  percam um pouco de tempo indagando,

  inquirindo, remexendo.

  Não se arrependerão. Não

  há gratificação maior do que o sorriso

  de mãe em festa

  e a paz íntima

  consequente às boas e desinteressadas ações,

  puro orvalho da alma.

  Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.

  O santo lume da fé

  ardeu sempre em sua alma

  que pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.

  Ela não se matou.

  Procurem-na.

  Tampouco foi vítima de desastre

  que a polícia ignora

  e os jornais não deram.

  Está viva para consolo de uma entrevada

  e triunfo geral do amor materno,

  filial

  e do próximo.

  Nada de insinuações quanto à moça casta

  e que não tinha, não tinha namorado.

  Algo de extraordinário terá acontecido,

  terremoto, chegada de rei.

  As ruas mudaram de rumo,

  para que demore tanto, é noite.

  Mas há de voltar, espontânea

  ou trazida por mão benigna,

  o olhar desviado e terno,

  canção.

  A qualquer hora do dia ou da noite

  quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.

  Não tem telefone.

  Tem uma empregada velha que apanha o recado

  e tomará providências.

  Mas

  se acharem que a sorte dos povos é mais importante

  e que não devemos atentar nas dores individuais,

  se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,

  não faz mal, insultem a mãe de Luísa,

  virem a página:

  Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,

  erguerá a enferma, e os membros perclusos

  já se desatam em forma de busca.

  Deus lhe dirá:

  Vai,

  procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

  Ou talvez não seja preciso esse favor divino.

  A mãe de Luísa (somos pecadores)

  sabe-se indigna de tamanha graça.

  E resta a espera, que sempre é um dom.

  Sim, os extraviados um dia regressam

  ou nunca, ou pode ser, ou ontem.

  E de pensar realizamos.

  Quer apenas sua filhinha

  que numa tarde remota de Cachoeiro

  acabou de nascer e cheira a leite,

  a cólica, a lágrima.

  Já não interessa a descrição do corpo

  nem esta, perdoem, fotografia,

  disfarces de realidade mais intensa

  e que anúncio algum proverá.

  Cessem pesquisas, rádios, calai-vos.

  Calma de flores abrindo

  no canteiro azul

  onde desabrocham seios e uma forma de virgem

  intata nos tempos.

  E de sentir compreendemos.

  Já não adianta procurar

  minha querida filha Luísa

  que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo

  com inúteis pés fixados, enquanto sofro

  e sofrendo me solto e me recomponho

  e torno a viver e ando,

  está inerte

  cravada no centro da estrela invisível

  Amor.

  DISAPPEARANCE OF LUISA PORTO

  Anyone who knows

  the whereabouts of Luisa Porto

  please contact her residence

  at 48 Rua Santos Óleos.

  Urgently notify

  her sick lonely mother

  a longtime cripple

  dependent on her care.

  Anyone who sees

  Luisa Porto, 37 years old,

  please tell her to come home, to write, to let us know

  where she is.

  Amateur reporters,

  sales clerks, mosquito exterminators, pedestrians,

  anyone from the working or middle class

  and even wealthy people are urged

  to take pity on a worried mother

  and bring home her missing daughter

  or at least provide some information.

  She’s tall, thin, dark-skinned,

  slightly cross-eyed, with peach fuzz on her face,

  white teeth, and a birthmark

  next to her left eye.

  Wears a housedress. Glasses.

  Last seen three months ago.

  Sought by her crippled mother.

  The charitable people of this city

  are asked to consider a family’s distress

  deserving special sympathy.

  Luisa is pleasant, courteous,

  gentle, hardworking, and religious.

  She went out to buy food at the public market.

  She didn’t come back.

  She had a little money in her pocket.

  (Search for Luisa.)

  She didn’t usually stay out long.

  (Search for Luisa.)

  She didn’t have a boyfriend.

  (Search for her. Search.)

  She’s greatly missed.

  If despite your efforts she doesn’t turn up

  don’t on that account quit searching

  with perseverance and faith which God always rewards

  and you may find her.

  Her mother, a poor widow, hasn’t lost hope.

  Since Luisa rarely went into town,

  here in the neighborhood is the best place to investigate.

  Her best friend, after her sick mother,

  is a seamstress called Rita Sant
ana, a single girl,

  who hasn’t revealed any news,

  answering all inquiries with: I don’t know.

  Which is a little odd.

  So many people disappear every year

  in a city like Rio de Janeiro

  that perhaps Luisa Porto will never be found.

  Once, in 1898

  or 9,

  the chief of police himself disappeared.

  He went out for a stroll on Rocio Square

  and that was the last of him.

  Luisa’s mother, still young,

  read about it in the Mercantile Gazette

  and was stunned.

  The story remained engraved in her memory.

  Little did she know that a brief marriage, widowhood,

  poverty, paralysis, and sorrow

  would be her lot in life

  and that her only child, a cross-eyed but agreeable girl,

  would mysteriously evaporate.

  For the last time and in the name

  of almighty and merciful God,

  search for her, search for the girl

  whose name is Luisa Porto

  and who doesn’t have a boyfriend.

  Forget political struggle,

  put business matters aside,

  and spend some time asking around,

  poking, probing.

  You won’t regret it. There’s nothing

  more gratifying than the smile

  of a jubilant mother

  and the inner peace

  ensuing from good and disinterested deeds,

  sweet balm for the soul.

  Don’t try telling me that Luisa committed suicide.

  The sacred fire of faith

  always burned in her soul,

  which belongs to God and Saint Theresa of the Child Jesus.

  She didn’t kill herself.

  Search for her.

  Nor was she the victim of some accident

  unknown to the police

  and unreported by the papers.

  She’s alive to the great relief of a crippled old lady

  and to the greater glory of maternal,

  filial, and neighborly

  love.

  Don’t make lewd insinuations about this girl

  who was chaste and didn’t, no she didn’t, have a boyfriend.

  Something out of the ordinary must have happened,

  an earthquake, or the arrival of a king.

  The streets must have changed direction

  for her to take so long, it’s already night.

  But she’s bound to return, on her own

  or led by a friendly hand,

  her eyes looking away and so soft,

  a song.

  If anyone finds her, no matter what time

  of day or night, please send word to Rua Santos Óleos.

  There’s no telephone.

  An old housekeeper will receive the message

  and handle the rest.

  But

  if you feel that the plight of the masses is more important

  and that we shouldn’t attend to individual sorrows,

  if you’ve shut your ears to the ringing of this appeal,

  then fine, you can insult Luisa’s mother

  and turn the page:

  God will pity the forlorn woman and her missing daughter,

  he’ll raise up that cripple, whose feeble legs

  will start kicking, ready to set out.

  God will say:

  Go,

  find your daughter, kiss her, and keep her forever in your heart.

  Or perhaps this divine favor won’t be necessary.

  Luisa’s mother (we’re all sinners)

  knows she’s unworthy of so much grace.

  And there’s always the precious gift of hope.

  Yes, the missing will come home one day,

  or never, or maybe, or yesterday.

  And thinking is a way of having.

  All she wants is her baby girl

  who one afternoon long ago in Cachoeiro

  was a newborn and smelled of milk,

  colic, and tears.

  Forget the physical description of Luisa

  and excuse this photograph,

  poor semblances of a more intense reality

  that no public notice can convey.

  Call off the searches. Radios, stop broadcasting.

  The calm of flowers opening

  in the blue flowerbed

  with blossoming breasts and a virgin figure

  undefiled for all time …

  And feeling is a way of understanding.

  It’s useless to keep searching

  for my dear daughter Luisa,

  since while I roam through the world’s ashes

  with worthless, lame feet, and while I suffer

  and by suffering release and recompose myself

  and again live and walk,

  she’s perfectly still,

  embedded in the center of that invisible star

  Love.

  JARDIM

  Negro jardim onde violas soam

  e o mal da vida em ecos se dispersa:

  à toa uma canção envolve os ramos,

  como a estátua indecisa se reflete

  no lago há longos anos habitado

  por peixes, não, matéria putrescível,

  mas por pálidas contas de colares

  que alguém vai desatando, olhos vazados

  e mãos oferecidas e mecânicas,

  de um vegetal segredo enfeitiçadas,

  enquanto outras visões se delineiam

  e logo se enovelam: mascarada,

  que sei de sua essência (ou não a tem),

  jardim apenas, pétalas, presságio.

  GARDEN

  Black garden where guitars are playing

  and the pain of life spreads out in echoes:

  a song meanders through the branches,

  as the hesitant statue reflects on itself

  in the pond inhabited for untold years

  by fish, not fish, they’re decayable matter,

  but by pale beads from necklaces

  that someone unstrings, with blank eyes

  and outstretched hands that mechanically move

  under the spell of a vegetable secret,

  while other visions come into focus,

  then blur and fade: a masquerade,

  whose essence (if it has one) eludes me,

  it’s just a garden, petals, a portent.

  CANTO ESPONJOSO

  Bela

  esta manhã sem carência de mito,

  e mel sorvido sem blasfêmia.

  Bela

  esta manhã ou outra possível,

  esta vida ou outra invenção,

  sem, na sombra, fantasmas.

  Umidade de areia adere ao pé.

  Engulo o mar, que me engole.

  Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz

  azul

  completa

  sobre formas constituídas.

  Bela

  a passagem do corpo, sua fusão

  no corpo geral do mundo.

  Vontade de cantar. Mas tão absoluta

  que me calo, repleto.

  SPONGE SONG

  Beautiful

  morning with no need of myths,

  sipping honey without blasphemy.

  Beautiful

  morning, this or some other morning,

  this life or some other invention,

  without any ghosts in the shadows.

  The sand’s dampness clings to my feet.

  I swallow the sea, which swallows me.

  Seashells, curved thoughts, shades of complete

  blue

  light

  over materialized forms.

  Beautiful

  passing body, blended into the whole

  body of the world.

  An urge to sing, but so intense

  I hold my tongue, replete.
r />   CLARO ENIGMA / CLEAR ENIGMA (1951)

  AMAR

  Que pode uma criatura senão,

  entre criaturas, amar?

  amar e esquecer,

  amar e malamar,

  amar, desamar, amar?

  sempre, e até de olhos vidrados, amar?

  Que pode, pergunto, o ser amoroso,

  sozinho, em rotação universal, senão

  rodar também, e amar?

  amar o que o mar traz à praia,

  o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

  é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

  Amar solenemente as palmas do deserto,

  o que é entrega ou adoração expectante,

  e amar o inóspito, o áspero,

  um vaso sem flor, um chão de ferro,

  e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

  Este o nosso destino: amor sem conta,

  distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

  doação ilimitada a uma completa ingratidão,

  e na concha vazia do amor a procura medrosa,

  paciente, de mais e mais amor.

  Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

  amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

  LOVE

  What can one creature among other creatures

  do but love?

  love and forget,

  love and mislove,

  love, unlove, love?

  always, and with wide eyes, love?

  What, I ask, can a loving soul

  alone in the universal rotation do

  but spin with everything else, and love?

  love what the wave brings to shore,

  what it buries, and what in the ocean breeze

  is salt, or the need for love, or mere longing?

  Love solemnly the desert palms,

  the act of surrender, or expectant adoration …

  And love what’s rough or barren,

  a flowerless vase, an iron land,

  the unfeeling breast, the street from a dream, a bird of prey …

  This is our destiny: to spread unmeasured love

  among treacherous or worthless things,

  to give without limits to a total ingratitude,

  and to search with hopeful patience, in love’s empty

  shell, for still more love.

  To love our very lack of love, and to love in our dryness

  the implicit water, and the tacit kiss, and that infinite thirst.

  TARDE DE MAIO

  Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,

  assim te levo comigo, tarde de maio,

  quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,

  outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,

  surdamente lavrava sob meus traços cômicos,

  e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes

  e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma

 

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