Roga-se ao povo caritativo desta cidade
que tome em consideração um caso de família
digno de simpatia especial.
Luísa é de bom gênio, correta,
meiga, trabalhadora, religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.
Não voltou.
Levava pouco dinheiro na bolsa.
(Procurem Luísa.)
De ordinário não se demorava.
(Procurem Luísa.)
Namorado isso não tinha.
(Procurem. Procurem.)
Faz tanta falta.
Se todavia não a encontrarem
nem por isso deixem de procurar
com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa
e talvez encontrem.
Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.
Luísa ia pouco à cidade
e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.
Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,
é Rita Santana, costureira, moça desimpedida,
a qual não dá notícia nenhuma,
limitando-se a responder: Não sei.
O que não deixa de ser esquisito.
Somem tantas pessoas anualmente
numa cidade como o Rio de Janeiro
que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.
Uma vez, em 1898
ou 9,
sumiu o próprio chefe de polícia
que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio
e até hoje.
A mãe de Luísa, então jovem,
leu no Diário Mercantil,
ficou pasma.
O jornal embrulhado na memória.
Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,
a pobreza, a paralisia, o queixume
seriam, na vida, seu lote
e que sua única filha, afável posto que estrábica,
se diluiria sem explicação.
Pela última vez e em nome de Deus
todo-poderoso e cheio de misericórdia
procurem a moça, procurem
essa que se chama Luísa Porto
e é sem namorado.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão. Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa
e a paz íntima
consequente às boas e desinteressadas ações,
puro orvalho da alma.
Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.
O santo lume da fé
ardeu sempre em sua alma
que pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.
Ela não se matou.
Procurem-na.
Tampouco foi vítima de desastre
que a polícia ignora
e os jornais não deram.
Está viva para consolo de uma entrevada
e triunfo geral do amor materno,
filial
e do próximo.
Nada de insinuações quanto à moça casta
e que não tinha, não tinha namorado.
Algo de extraordinário terá acontecido,
terremoto, chegada de rei.
As ruas mudaram de rumo,
para que demore tanto, é noite.
Mas há de voltar, espontânea
ou trazida por mão benigna,
o olhar desviado e terno,
canção.
A qualquer hora do dia ou da noite
quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.
Não tem telefone.
Tem uma empregada velha que apanha o recado
e tomará providências.
Mas
se acharem que a sorte dos povos é mais importante
e que não devemos atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,
não faz mal, insultem a mãe de Luísa,
virem a página:
Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,
erguerá a enferma, e os membros perclusos
já se desatam em forma de busca.
Deus lhe dirá:
Vai,
procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.
Ou talvez não seja preciso esse favor divino.
A mãe de Luísa (somos pecadores)
sabe-se indigna de tamanha graça.
E resta a espera, que sempre é um dom.
Sim, os extraviados um dia regressam
ou nunca, ou pode ser, ou ontem.
E de pensar realizamos.
Quer apenas sua filhinha
que numa tarde remota de Cachoeiro
acabou de nascer e cheira a leite,
a cólica, a lágrima.
Já não interessa a descrição do corpo
nem esta, perdoem, fotografia,
disfarces de realidade mais intensa
e que anúncio algum proverá.
Cessem pesquisas, rádios, calai-vos.
Calma de flores abrindo
no canteiro azul
onde desabrocham seios e uma forma de virgem
intata nos tempos.
E de sentir compreendemos.
Já não adianta procurar
minha querida filha Luísa
que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro
e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando,
está inerte
cravada no centro da estrela invisível
Amor.
DISAPPEARANCE OF LUISA PORTO
Anyone who knows
the whereabouts of Luisa Porto
please contact her residence
at 48 Rua Santos Óleos.
Urgently notify
her sick lonely mother
a longtime cripple
dependent on her care.
Anyone who sees
Luisa Porto, 37 years old,
please tell her to come home, to write, to let us know
where she is.
Amateur reporters,
sales clerks, mosquito exterminators, pedestrians,
anyone from the working or middle class
and even wealthy people are urged
to take pity on a worried mother
and bring home her missing daughter
or at least provide some information.
She’s tall, thin, dark-skinned,
slightly cross-eyed, with peach fuzz on her face,
white teeth, and a birthmark
next to her left eye.
Wears a housedress. Glasses.
Last seen three months ago.
Sought by her crippled mother.
The charitable people of this city
are asked to consider a family’s distress
deserving special sympathy.
Luisa is pleasant, courteous,
gentle, hardworking, and religious.
She went out to buy food at the public market.
She didn’t come back.
She had a little money in her pocket.
(Search for Luisa.)
She didn’t usually stay out long.
(Search for Luisa.)
She didn’t have a boyfriend.
(Search for her. Search.)
She’s greatly missed.
If despite your efforts she doesn’t turn up
don’t on that account quit searching
with perseverance and faith which God always rewards
and you may find her.
Her mother, a poor widow, hasn’t lost hope.
Since Luisa rarely went into town,
here in the neighborhood is the best place to investigate.
Her best friend, after her sick mother,
is a seamstress called Rita Sant
ana, a single girl,
who hasn’t revealed any news,
answering all inquiries with: I don’t know.
Which is a little odd.
So many people disappear every year
in a city like Rio de Janeiro
that perhaps Luisa Porto will never be found.
Once, in 1898
or 9,
the chief of police himself disappeared.
He went out for a stroll on Rocio Square
and that was the last of him.
Luisa’s mother, still young,
read about it in the Mercantile Gazette
and was stunned.
The story remained engraved in her memory.
Little did she know that a brief marriage, widowhood,
poverty, paralysis, and sorrow
would be her lot in life
and that her only child, a cross-eyed but agreeable girl,
would mysteriously evaporate.
For the last time and in the name
of almighty and merciful God,
search for her, search for the girl
whose name is Luisa Porto
and who doesn’t have a boyfriend.
Forget political struggle,
put business matters aside,
and spend some time asking around,
poking, probing.
You won’t regret it. There’s nothing
more gratifying than the smile
of a jubilant mother
and the inner peace
ensuing from good and disinterested deeds,
sweet balm for the soul.
Don’t try telling me that Luisa committed suicide.
The sacred fire of faith
always burned in her soul,
which belongs to God and Saint Theresa of the Child Jesus.
She didn’t kill herself.
Search for her.
Nor was she the victim of some accident
unknown to the police
and unreported by the papers.
She’s alive to the great relief of a crippled old lady
and to the greater glory of maternal,
filial, and neighborly
love.
Don’t make lewd insinuations about this girl
who was chaste and didn’t, no she didn’t, have a boyfriend.
Something out of the ordinary must have happened,
an earthquake, or the arrival of a king.
The streets must have changed direction
for her to take so long, it’s already night.
But she’s bound to return, on her own
or led by a friendly hand,
her eyes looking away and so soft,
a song.
If anyone finds her, no matter what time
of day or night, please send word to Rua Santos Óleos.
There’s no telephone.
An old housekeeper will receive the message
and handle the rest.
But
if you feel that the plight of the masses is more important
and that we shouldn’t attend to individual sorrows,
if you’ve shut your ears to the ringing of this appeal,
then fine, you can insult Luisa’s mother
and turn the page:
God will pity the forlorn woman and her missing daughter,
he’ll raise up that cripple, whose feeble legs
will start kicking, ready to set out.
God will say:
Go,
find your daughter, kiss her, and keep her forever in your heart.
Or perhaps this divine favor won’t be necessary.
Luisa’s mother (we’re all sinners)
knows she’s unworthy of so much grace.
And there’s always the precious gift of hope.
Yes, the missing will come home one day,
or never, or maybe, or yesterday.
And thinking is a way of having.
All she wants is her baby girl
who one afternoon long ago in Cachoeiro
was a newborn and smelled of milk,
colic, and tears.
Forget the physical description of Luisa
and excuse this photograph,
poor semblances of a more intense reality
that no public notice can convey.
Call off the searches. Radios, stop broadcasting.
The calm of flowers opening
in the blue flowerbed
with blossoming breasts and a virgin figure
undefiled for all time …
And feeling is a way of understanding.
It’s useless to keep searching
for my dear daughter Luisa,
since while I roam through the world’s ashes
with worthless, lame feet, and while I suffer
and by suffering release and recompose myself
and again live and walk,
she’s perfectly still,
embedded in the center of that invisible star
Love.
JARDIM
Negro jardim onde violas soam
e o mal da vida em ecos se dispersa:
à toa uma canção envolve os ramos,
como a estátua indecisa se reflete
no lago há longos anos habitado
por peixes, não, matéria putrescível,
mas por pálidas contas de colares
que alguém vai desatando, olhos vazados
e mãos oferecidas e mecânicas,
de um vegetal segredo enfeitiçadas,
enquanto outras visões se delineiam
e logo se enovelam: mascarada,
que sei de sua essência (ou não a tem),
jardim apenas, pétalas, presságio.
GARDEN
Black garden where guitars are playing
and the pain of life spreads out in echoes:
a song meanders through the branches,
as the hesitant statue reflects on itself
in the pond inhabited for untold years
by fish, not fish, they’re decayable matter,
but by pale beads from necklaces
that someone unstrings, with blank eyes
and outstretched hands that mechanically move
under the spell of a vegetable secret,
while other visions come into focus,
then blur and fade: a masquerade,
whose essence (if it has one) eludes me,
it’s just a garden, petals, a portent.
CANTO ESPONJOSO
Bela
esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfêmia.
Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.
Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.
Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
SPONGE SONG
Beautiful
morning with no need of myths,
sipping honey without blasphemy.
Beautiful
morning, this or some other morning,
this life or some other invention,
without any ghosts in the shadows.
The sand’s dampness clings to my feet.
I swallow the sea, which swallows me.
Seashells, curved thoughts, shades of complete
blue
light
over materialized forms.
Beautiful
passing body, blended into the whole
body of the world.
An urge to sing, but so intense
I hold my tongue, replete.
r /> CLARO ENIGMA / CLEAR ENIGMA (1951)
AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
LOVE
What can one creature among other creatures
do but love?
love and forget,
love and mislove,
love, unlove, love?
always, and with wide eyes, love?
What, I ask, can a loving soul
alone in the universal rotation do
but spin with everything else, and love?
love what the wave brings to shore,
what it buries, and what in the ocean breeze
is salt, or the need for love, or mere longing?
Love solemnly the desert palms,
the act of surrender, or expectant adoration …
And love what’s rough or barren,
a flowerless vase, an iron land,
the unfeeling breast, the street from a dream, a bird of prey …
This is our destiny: to spread unmeasured love
among treacherous or worthless things,
to give without limits to a total ingratitude,
and to search with hopeful patience, in love’s empty
shell, for still more love.
To love our very lack of love, and to love in our dryness
the implicit water, and the tacit kiss, and that infinite thirst.
TARDE DE MAIO
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
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