Multitudinous Heart

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Multitudinous Heart Page 11

by Carlos Drummond de Andrade


  nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza

  sem fruto.

  Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,

  colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.

  Eu nada te peço a ti, tarde de maio,

  senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,

  sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de

  converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém

  que, precisamente, volve o rosto, e passa …

  Outono é a estação em que ocorrem tais crises,

  e em maio, tantas vezes, morremos.

  Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,

  já então espectrais sob o aveludado da casca,

  trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres

  com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro

  fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,

  sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

  E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito

  lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.

  Nem houve testemunha.

  Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.

  Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?

  Se morro de amor, todos o ignoram

  e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.

  O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;

  não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória

  das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,

  perdida no ar, por que melhor se conserve,

  uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

  MAY AFTERNOON

  Like primitive men who devoutly hold on to the lower jawbone of their dead,

  so I hold you, May afternoon,

  when fires were redly consuming the earth

  and a far more devastating, unseen flame

  raged quietly under my comic features

  and left all across the burning ground, disjecta membra,

  my soul’s condemned, still throbbing pieces,

  which never before or after revealed such fruitless

  nobility.

  But primitive men appeal to their relic for health and rain,

  a good harvest, the enemy’s defeat, this or that miracle.

  All I ask of you, May afternoon,

  is that you endure, irreversible, in time and outside it,

  a mark of defeat that slowly wears down to become

  a beauty mark on the very face

  that turns away from me, and passes …

  Autumn is the season when such crises occur,

  and in May very often we die.

  To be reborn, I know, in a fictitious spring,

  already ghostly under our velvety husk,

  carrying in our shadow the stubbornly sticking resins

  used to anoint our corpses, and in our clothes the dust

  of the hearse, May afternoon when we perished

  without anyone paying heed, love included.

  And those who happened to be there couldn’t say if it was a mournful

  procession, plodding and dusty, or a carnival parade.

  There were no witnesses.

  There are never any witnesses. There are oblivious or curious bystanders.

  Who recognizes drama when it leaps into being, without masks?

  If I die of love, no one notices

  or admits it. My very love dismisses and mistreats itself.

  It goes into hiding, like hunted prey, uncertain of really being

  love, so long ago did it wash from memory the impurities

  of earth and vegetation in which it lay. And what remains,

  adrift in the air, a better medium to preserve it,

  is a singular sadness, which stamps its seal on the clouds.

  A INGAIA CIÊNCIA

  A madureza, essa terrível prenda

  que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,

  todo sabor gratuito de oferenda

  sob a glacialidade de uma estela,

  a madureza vê, posto que a venda

  interrompa a surpresa da janela,

  o círculo vazio, onde se estenda,

  e que o mundo converte numa cela.

  A madureza sabe o preço exato

  dos amores, dos ócios, dos quebrantos,

  e nada pode contra sua ciência

  e nem contra si mesma. O agudo olfato,

  o agudo olhar, a mão, livre de encantos,

  se destroem no sonho da existência.

  THE UNGAY SCIENCE

  Maturity, that terrible gift

  whose giver, giving it, takes away

  all the spontaneous joy of receiving

  under the icy shade of a headstone—

  maturity sees, despite the blindfold

  blocking the window’s fresh surprise,

  the empty circle that has no end

  and that turns the world into a jail.

  Maturity knows the exact price

  of love, of leisure, of sorceries,

  and can do nothing against its own science

  or self. Its sharpened gaze, sharp sense

  of smell, and hand freed of every enchantment

  self-destruct in the dream of existence.

  CANTIGA DE ENGANAR

  O mundo não vale o mundo,

  meu bem.

  Eu plantei um pé-de-sono,

  brotaram vinte roseiras.

  Se me cortei nelas todas

  e se todas se tingiram

  de um vago sangue jorrado

  ao capricho dos espinhos,

  não foi culpa de ninguém.

  O mundo,

  meu bem,

  não vale

  a pena, e a face serena

  vale a face torturada.

  Há muito aprendi a rir,

  de quê? de mim? ou de nada?

  O mundo, valer não vale.

  Tal como sombra no vale,

  a vida baixa … e se sobe

  algum som deste declive,

  não é grito de pastor

  convocando seu rebanho.

  Não é flauta, não é canto

  de amoroso desencanto.

  Não é suspiro de grilo,

  voz noturna de nascentes,

  não é mãe chamando filho,

  não é silvo de serpentes

  esquecidas de morder

  como abstratas ao luar.

  Não é choro de criança

  para um homem se formar.

  Tampouco a respiração

  de soldados e de enfermos,

  de meninos internados

  ou de freiras em clausura.

  Não são grupos submergidos

  nas geleiras do entressono

  e que deixem desprender-se,

  menos que simples palavra,

  menos que folha no outono,

  a partícula sonora

  que a vida contém, e a morte

  contém, o mero registro

  da energia concentrada.

  Não é nem isto, nem nada.

  É som que precede a música,

  sobrante dos desencontros

  e dos encontros fortuitos,

  dos malencontros e das

  miragens que se condensam

  ou que se dissolvem noutras

  absurdas figurações.

  O mundo não tem sentido.

  O mundo e suas canções

  de timbre mais comovido

  estão calados, e a fala

  que de uma para outra sala

  ouvimos em certo instante

  é silêncio que faz eco

  e que volta a ser silêncio

  no negrume circundante.

  Silêncio: que quer dizer?

  Que diz a boca do mundo?

  Meu bem, o mundo é fechado,

  se não for antes vaz
io.

  O mundo é talvez: e é só.

  Talvez nem seja talvez.

  O mundo não vale a pena,

  mas a pena não existe.

  Meu bem, façamos de conta.

  De sofrer e de olvidar,

  de lembrar e de fruir,

  de escolher nossas lembranças

  e revertê-las, acaso

  se lembrem demais em nós.

  Façamos, meu bem, de conta

  — mas a conta não existe—

  que é tudo como se fosse,

  ou que, se fora, não era.

  Meu bem, usemos palavras.

  Façamos mundos: ideias.

  Deixemos o mundo aos outros,

  já que o querem gastar.

  Meu bem, sejamos fortíssimos

  — mas a força não existe—

  e na mais pura mentira

  do mundo que se desmente,

  recortemos nossa imagem,

  mais ilusória que tudo,

  pois haverá maior falso

  que imaginar-se alguém vivo,

  como se um sonho pudesse

  dar-nos o gosto do sonho?

  Mas o sonho não existe.

  Meu bem, assim acordados,

  assim lúcidos, severos,

  ou assim abandonados,

  deixando-nos à deriva

  levar na palma do tempo

  — mas o tempo não existe—,

  sejamos como se fôramos

  num mundo que fosse: o Mundo.

  MAKE-BELIEVE LULLABY

  The world’s not worth the world,

  my love.

  I planted a sleep tree, and up

  came twenty rosebushes.

  If I cut myself on them all

  and if all of them were stained

  by a hazy blood issued

  at the whim of the thorns,

  it wasn’t anyone’s fault.

  The world,

  my love,

  isn’t worth

  our trouble, nor is an untroubled

  face worth more than a pained one.

  I learned long ago to laugh,

  at what? At me? At nothing?

  The world, worth nothing, isn’t valid.

  Like the shadow in the valley,

  life descends … and if some

  sound rises out of that depth,

  it’s not the shepherd’s shout

  rounding up his sheep.

  It’s not a flute or a chant

  of disenchanted love.

  It’s not a cricket’s sigh,

  or the nighttime voice of streams,

  or a mother calling her son.

  It’s not the hiss of serpents

  so entranced in the moonlight

  they forget about biting.

  It’s not a boy crying

  for a man to take shape.

  Nor is it the breathing

  of soldiers or the sick,

  of children in boarding schools

  or nuns walled up in convents.

  It’s not groups that, submersed

  in the glaciers of half-sleep,

  let themselves slip away,

  less than a simple word,

  less than an autumn leaf,

  the particle of sound

  that life contains, and death

  contains, the barest record

  of concentrated energy.

  It’s not this, or anything.

  It’s sound before music,

  it’s what remains from non-

  encounters, chance encounters,

  mis-encounters, from mirages

  that condense or dissolve

  into other absurd representations.

  The world has no meaning.

  The world and its most moving

  songs are still, and the speech

  we suddenly hear

  from the next room

  is silence making an echo

  and returning to being silence

  in the all-surrounding darkness.

  Silence: what is it saying?

  What does the world say?

  The world, my love, is sealed,

  if it isn’t simply empty.

  The world is perhaps. Period.

  Perhaps it’s not even perhaps.

  The world’s not worth our trouble,

  but trouble doesn’t exist.

  Let’s make believe, my love,

  that we suffer and forget,

  remember and enjoy,

  select our memories

  and unselect them whenever

  they remember too much in us.

  My love, let’s make believe

  — but the believed doesn’t exist—

  that everything’s as if it were,

  or that, if it was, it wasn’t.

  Let’s use words, my love.

  Let’s make worlds: ideas.

  Let’s leave the world to others,

  since they want to consume it.

  My love, let’s summon our strength

  — but strength doesn’t exist—

  and in the purest lie

  of this self-belying world

  let’s fashion our own image,

  more illusory than anything,

  since what could be more false

  than to fancy oneself alive,

  as if a dream could give us

  the pleasure we dream of?

  But the dream doesn’t exist.

  And thus, my love, completely

  awake, clear-minded, severe,

  or with complete abandon,

  letting ourselves wander

  in the palm of time

  — but time doesn’t exist —

  let’s act as if we were

  in a world that could be: the World.

  PERGUNTAS

  Numa incerta hora fria

  perguntei ao fantasma

  que força nos prendia,

  ele a mim, que presumo

  estar livre de tudo,

  eu a ele, gasoso,

  todavia palpável

  na sombra que projeta

  sobre meu ser inteiro:

  um ao outro, cativos

  desse mesmo princípio

  ou desse mesmo enigma

  que distrai ou concentra

  e renova e matiza,

  prolongando-a no espaço,

  uma angústia do tempo.

  Perguntei-lhe em seguida

  o segredo de nosso

  convívio sem contato,

  de estarmos ali quedos,

  eu em face do espelho,

  e o espelho devolvendo

  uma diversa imagem,

  mas sempre evocativa

  do primeiro retrato

  que compõe de si mesma

  a alma predestinada

  a um tipo de aventura

  terrestre, cotidiana.

  Perguntei-lhe depois

  por que tanto insistia

  nos mares mais exíguos

  em distribuir navios

  desse calado irreal,

  sem rota ou pensamento

  de atingir qualquer porto,

  propícios a naufrágio

  mais que a navegação;

  nos frios alcantis

  de meu serro natal,

  desde muito derruído,

  em acordar memórias

  de vaqueiros e vozes,

  magras reses, caminhos

  onde a bosta de vaca

  é o único ornamento,

  e o coqueiro-de-espinho

  desolado se alteia.

  Perguntei-lhe por fim

  a razão sem razão

  de me inclinar aflito

  sobre restos de restos,

  de onde nenhum alento

  vem refrescar a febre

  deste repensamento;

  sobre esse chão de ruínas

  imóveis, militares

  na sua rigidez

  que o orvalho matutino

  já não banha ou conforta
.

  No voo que desfere,

  silente e melancólico,

  rumo da eternidade,

  ele apenas responde

  (se acaso é responder

  a mistérios, somar-lhes

  um mistério mais alto):

  Amar, depois de perder.

  QUESTIONS

  One cold, uncertain hour

  I asked the ghost

  what force binds us,

  him to me, whom I think of

  as not bound to anything,

  and me to him, gaseous

  yet vividly felt

  in the shadow he casts

  over all my being:

  reciprocal captives

  of the same principle

  (or the same enigma)

  that distracts or focuses

  and renews and refines

  an anxiety of time,

  prolonging it in space.

  Next I asked him

  the secret of our

  intimacy without contact,

  our quiet colloquy,

  me facing the mirror

  and the mirror returning

  a likeness that’s different

  yet always reminiscent

  of the first image

  a soul conceives for itself

  when predestined to live

  an earthly, everyday

  sort of adventure.

  Then I asked him

  why he so insists

  on such tiny seas,

  on launching ships

  with unreal hulls,

  with no route or idea

  of reaching any port,

  ships fit for shipwreck

  more than sailing;

  why he insists on the cold

  crags of the long-toppled

  mountains of my childhood,

  on arousing old memories

  of cowherds, voices,

  scrawny livestock, paths

  where cow dung

  was the only adornment,

  and the desolate macaw palm

  reigned tall.

  Finally I asked him

  the unreasonable reason

  for leaning me, in anguish,

  over remains of remains

  from where no breath wafts

  to cool the fever

  of my reconsiderations;

  over that field of static

  ruins, whose military

  rigidity the morning

  dew no longer

  bathes or comforts.

  While rising in flight,

  taciturn and melancholy,

  bound for eternity,

  he gave only this answer

  (if mysteries can indeed

  be answered by another,

  still higher mystery):

  To love, after losing.

  CARTA

  Bem quisera escrevê-la

  com palavras sabidas,

  as mesmas, triviais,

  embora estremecessem

  a um toque de paixão.

  Perfurando os obscuros

  canais de argila e sombra,

  ela iria contando

  que vou bem, e amo sempre

 

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