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Multitudinous Heart

Page 12

by Carlos Drummond de Andrade

e amo cada vez mais

  a essa minha maneira

  torcida e reticente,

  e espero uma resposta,

  mas que não tarde; e peço

  um objeto minúsculo

  só para dar prazer

  a quem pode ofertá-lo;

  diria ela do tempo

  que faz do nosso lado;

  as chuvas já secaram,

  as crianças estudam,

  uma última invenção

  (inda não é perfeita)

  faz ler nos corações,

  mas todos esperamos

  rever-nos bem depressa.

  Muito depressa, não.

  Vai-se tornando o tempo

  estranhamente longo

  à medida que encurta.

  O que ontem disparava,

  desbordado alazão,

  hoje se paralisa

  em esfinge de mármore,

  e até o sono, o sono

  que era grato e era absurdo

  é um dormir acordado

  numa planície grave.

  Rápido é o sonho, apenas,

  que se vai, de mandar

  notícias amorosas

  quando não há amor

  a dar ou receber;

  quando só há lembrança,

  ainda menos, pó,

  menos ainda, nada,

  nada de nada em tudo,

  em mim mais do que em tudo,

  e não vale acordar

  quem acaso repouse

  na colina sem árvores.

  Contudo, esta é uma carta.

  LETTER

  I wish I could write this

  with the right words,

  as trite as ever

  yet apt to tremble

  if touched by passion.

  Cutting dark tunnels

  through clay and shadow,

  my letter would tell you

  I’m fine and still love you,

  and love more with each day

  in my twisted and hesitant

  way, and I hope

  you answer, and please

  don’t delay, and I’d ask

  for a tiny something

  just to afford you

  the pleasure of giving.

  It would tell you about

  the weather over here,

  how the rains have stopped,

  the kids are in school,

  a recent invention

  (still being perfected)

  can read people’s hearts,

  but we all hope

  to see you again soon.

  Not too soon, though.

  As it gets shorter,

  time’s becoming

  strangely lengthy.

  What bolted yesterday

  like a fired-up steed

  freezes into a marble

  sphinx today,

  and even sleep,

  which was sweet and absurd,

  now sleeps while awake

  on a somber plain.

  The only swift thing

  is the fleeting dream

  of sending loving news

  when there’s no love

  to give or receive,

  when there’s just memory,

  or still less, dust,

  or less yet, nothing,

  nothing of nothing

  in everything,

  and more nothing in me,

  and it’s no use waking up

  whoever’s resting

  on the treeless hill.

  But this is a letter.

  A MESA

  E não gostavas de festa …

  Ó velho, que festa grande

  hoje te faria a gente.

  E teus filhos que não bebem

  e o que gosta de beber,

  em torno da mesa larga,

  largavam as tristes dietas,

  esqueciam seus fricotes,

  e tudo era farra honesta

  acabando em confidência.

  Ai, velho, ouvirias coisas

  de arrepiar teus noventa.

  E daí, não te assustávamos,

  porque, com riso na boca,

  e a nédia galinha, o vinho

  português de boa pinta,

  e mais o que alguém faria

  de mil coisas naturais

  e fartamente poria

  em mil terrinas da China,

  já logo te insinuávamos

  que era tudo brincadeira.

  Pois sim. Teu olho cansado,

  mas afeito a ler no campo

  uma lonjura de léguas,

  e na lonjura uma rês

  perdida no azul azul,

  entrava-nos alma adentro

  e via essa lama podre

  e com pesar nos fitava

  e com ira amaldiçoava

  e com doçura perdoava

  (perdoar é rito de pais,

  quando não seja de amantes).

  E, pois, todo nos perdoando,

  por dentro te regalavas

  de ter filhos assim … Puxa,

  grandessíssimos safados,

  me saíram bem melhor

  que as encomendas. De resto,

  filho de peixe … Calavas,

  com agudo sobrecenho

  interrogavas em ti

  uma lembrança saudosa

  e não de todo remota

  e rindo por dentro e vendo

  que lançaras uma ponte

  dos passos loucos do avô

  à incontinência dos netos,

  sabendo que toda carne

  aspira à degradação,

  mas numa via de fogo

  e sob um arco sexual,

  tossias. Hem, hem, meninos,

  não sejam bobos. Meninos?

  Uns marmanjos cinquentões,

  calvos, vividos, usados,

  mas resguardando no peito

  essa alvura de garoto,

  essa fuga para o mato,

  essa gula defendida

  e o desejo muito simples

  de pedir à mãe que cosa,

  mais do que nossa camisa,

  nossa alma frouxa, rasgada …

  Ai, grande jantar mineiro

  que seria esse … Comíamos,

  e comer abria fome,

  e comida era pretexto.

  E nem mesmo precisávamos

  ter apetite, que as coisas

  deixavam-se espostejar,

  e amanhã é que eram elas.

  Nunca desdenhe o tutu.

  Vá lá mais um torresminho.

  E quanto ao peru? Farofa

  há de ser acompanhada

  de uma boa cachacinha,

  não desfazendo em cerveja,

  essa grande camarada.

  Ind’outro dia … Comer

  guarda tamanha importância

  que só o prato revele

  o melhor, o mais humano

  dos seres em sua treva?

  Beber é pois tão sagrado

  que só bebido meu mano

  me desata seu queixume,

  abrindo-me sua palma?

  Sorver, papar: que comida

  mais cheirosa, mais profunda

  no seu tronco luso-árabe,

  e que bebida mais santa

  que a todos nos une em um

  tal centímano glutão,

  parlapatão e bonzão!

  E nem falta a irmã que foi

  mais cedo que os outros e era

  rosa de nome e nascera

  em dia tal como o de hoje

  para enfeitar tua data.

  Seu nome sabe a camélia,

  e sendo uma rosa-amélia,

  flor muito mais delicada

  que qualquer das rosas-rosa,

  viveu bem mais do que o nome,

  porém no íntimo claustrava

  a rosa esparsa. A teu lado,

  vê: recobrou-se-lhe o viço.

  Aqui sentou-se o mais velho.

  Tipo do manso, do sonso,

  não servia para padre,

  amav
a casos bandalhos;

  depois o tempo fez dele

  o que faz de qualquer um;

  e à medida que envelhece,

  vai estranhamente sendo

  retrato teu sem ser tu,

  de sorte que se o diviso

  de repente, sem anúncio,

  és tu que me reapareces

  noutro velho de sessenta.

  Este outro aqui é doutor,

  o bacharel da família,

  mas suas letras mais doutas

  são as escritas no sangue,

  ou sobre a casca das árvores.

  Sabe o nome da florzinha

  e não esquece o da fruta

  mais rara que se prepara

  num casamento genético.

  Mora nele a nostalgia,

  citadino, do ar agreste,

  e, camponês, do letrado.

  Então vira patriarca.

  Mais adiante vês aquele

  que de ti herdou a dura

  vontade, o duro estoicismo.

  Mas, não quis te repetir.

  Achou não valer a pena

  reproduzir sobre a terra

  o que a terra engolirá.

  Amou. E ama. E amará.

  Só não quer que seu amor

  seja uma prisão de dois,

  um contrato, entre bocejos

  e quatro pés de chinelo.

  Feroz a um breve contato,

  à segunda vista, seco,

  à terceira vista, lhano,

  dir-se-ia que ele tem medo

  de ser, fatalmente, humano.

  Dir-se-ia que ele tem raiva,

  mas que mel transcende a raiva,

  e que sábios, ardilosos

  recursos de se enganar

  quanto a si mesmo: exercita

  uma força que não sabe

  chamar-se, apenas, bondade.

  Esta calou-se. Não quis

  manter com palavras novas

  o colóquio subterrâneo

  que num sussurro percorre

  a gente mais desatada.

  Calou-se, não te aborreças.

  Se tanto assim a querias,

  algo nela ainda te quer,

  à maneira atravessada

  que é própria de nosso jeito.

  (Não ser feliz tudo explica.)

  Bem sei como são penosos

  esses lances de família,

  e discutir neste instante

  seria matar a festa,

  matando-te — não se morre

  uma só vez, nem de vez.

  Restam sempre muitas vidas

  para serem consumidas

  na razão dos desencontros

  de nosso sangue nos corpos

  por onde vai dividido.

  Ficam sempre muitas mortes

  para serem longamente

  reencarnadas noutro morto.

  Mas estamos todos vivos.

  E mais que vivos, alegres.

  Estamos todos como éramos

  antes de ser, e ninguém

  dirá que ficou faltando

  algum dos teus. Por exemplo:

  ali ao canto da mesa,

  não por humilde, talvez

  por ser o rei dos vaidosos

  e se pelar por incômodas

  posições de tipo gauche,

  ali me vês tu. Que tal?

  Fica tranquilo: trabalho.

  Afinal, a boa vida

  ficou apenas: a vida

  (e nem era assim tão boa

  e nem se fez muito má).

  Pois ele sou eu. Repara:

  tenho todos os defeitos

  que não farejei em ti,

  e nem os tenho que tinhas,

  quanto mais as qualidades.

  Não importa: sou teu filho

  com ser uma negativa

  maneira de te afirmar.

  Lá que brigamos, brigamos,

  opa! que não foi brinquedo,

  mas os caminhos do amor,

  só amor sabe trilhá-los.

  Tão ralo prazer te dei,

  nenhum, talvez … ou senão,

  esperança de prazer,

  é, pode ser que te desse

  a neutra satisfação

  de alguém sentir que seu filho,

  de tão inútil, seria

  sequer um sujeito ruim.

  Não sou um sujeito ruim.

  Descansa, se o suspeitavas,

  mas não sou lá essas coisas.

  Alguns afetos recortam

  o meu coração chateado.

  Se me chateio? demais.

  Esse é meu mal. Não herdei

  de ti essa balda. Bem,

  não me olhes tão longo tempo,

  que há muitos a ver ainda.

  Há oito. E todos minúsculos,

  todos frustrados. Que flora

  mais triste fomos achar

  para ornamento de mesa!

  Qual nada. De tão remotos,

  de tão puros e esquecidos

  no chão que suga e transforma,

  são anjos. Que luminosos!

  que raios de amor radiam,

  e em meio a vagos cristais,

  o cristal deles retine,

  reverbera a própria sombra.

  São anjos que se dignaram

  participar do banquete,

  alisar o tamborete,

  viver vida de menino.

  São anjos; e mal sabias

  que um mortal devolve a Deus

  algo de sua divina

  substância aérea e sensível,

  se tem um filho e se o perde.

  Conta: catorze na mesa.

  Ou trinta? serão cinquenta,

  que sei? se chegam mais outros,

  uma carne cada dia

  multiplicada, cruzada

  a outras carnes de amor.

  São cinquenta pecadores,

  se pecado é ter nascido

  e provar, entre pecados,

  os que nos foram legados.

  A procissão de teus netos,

  alongando-se em bisnetos,

  veio pedir tua bênção

  e comer de teu jantar.

  Repara um pouquinho nesta,

  no queixo, no olhar, no gesto,

  e na consciência profunda

  e na graça menineira,

  e dize, depois de tudo,

  se não é, entre meus erros,

  uma imprevista verdade.

  Esta é minha explicação,

  meu verso melhor ou único,

  meu tudo enchendo meu nada.

  Agora a mesa repleta

  está maior do que a casa.

  Falamos de boca cheia,

  xingamo-nos mutuamente,

  rimos, ai, de arrebentar,

  esquecemos o respeito

  terrível, inibidor,

  e toda a alegria nossa,

  ressecada em tantos negros

  bródios comemorativos

  (não convém lembrar agora),

  os gestos acumulados

  de efusão fraterna, atados

  (não convém lembrar agora),

  as fina-e-meigas palavras

  que ditas naquele tempo

  teriam mudado a vida

  (não convém mudar agora),

  vem tudo à mesa e se espalha

  qual inédita vitualha.

  Oh que ceia mais celeste

  e que gozo mais do chão!

  Quem preparou? que inconteste

  vocação de sacrifício

  pôs a mesa, teve os filhos?

  quem se apagou? quem pagou

  a pena deste trabalho?

  quem foi a mão invisível

  que traçou este arabesco

  de flor em torno ao pudim,

  como se traça uma auréola?

  quem tem auréola? quem não

  a tem, pois que, sendo de ouro,

  cuida logo em reparti-la,

  e se pensa melhor faz?

  quem senta do lado esquerdo,

  assim curvada? que b
ranca,

  mas que branca mais que branca

  tarja de cabelos brancos

  retira a cor das laranjas,

  anula o pó do café,

  cassa o brilho aos serafins?

  quem é toda luz e é branca?

  Decerto não pressentias

  como o branco pode ser

  uma tinta mais diversa

  da mesma brancura … Alvura

  elaborada na ausência

  de ti, mas ficou perfeita,

  concreta, fria, lunar.

  Como pode nossa festa

  ser de um só que não de dois?

  Os dois ora estais reunidos

  numa aliança bem maior

  que o simples elo da terra.

  Estais juntos nesta mesa

  de madeira mais de lei

  que qualquer lei da república.

  Estais acima de nós,

  acima deste jantar

  para o qual vos convocamos

  por muito — enfim — vos querermos

  e, amando, nos iludirmos

  junto da mesa

  vazia.

  THE TABLE

  And you didn’t like parties …

  But what a party, old man,

  we’d throw for you today.

  Your sons who don’t drink

  and the one who loves drinking,

  seated around the big table,

  would forgo their sad diets

  and forget their complaints,

  we’d have good-hearted fun

  and end up baring our souls.

  You’d hear things, old man,

  that would stun your ninety years.

  We wouldn’t alarm you, though,

  since with smiles on our faces,

  the plump chicken, a choice

  Portuguese wine, and a thousand

  things from Nature’s bounty

  that someone would prepare

  and copiously serve up

  in a thousand Chinese tureens,

  we’d make you understand

  that it was all in jest.

  That’s right. Your tired eyes,

  which are still able to read

  across miles of field and spot

  in those miles a calf gone astray

  in the blue so blue,

  would look into our souls

  and see that rotten mud

  and stare at us with sorrow

  and curse us with fury

  and gently forgive us

  (forgiveness is a ritual

  of parents as well as lovers).

  Everything forgiven,

  deep down you’d feel lucky

  to have sons like us …

  Truth is, you big old rascals

  turned out a lot better

  than I bargained for. Chips

  off the old block, I guess …

  Falling silent, with an arched

  brow you’d call up a fond

  and not entirely remote

  memory, and laughing inside

  and seeing how you’d thrown

  a bridge from the crazy

  pacing of your own father

  to the horsing around of your sons,

  knowing that all flesh

  aspires to degradation,

  but on a path of fire

  and under a sexual spell,

  you’d cough. Ahem, hey kids,

  don’t be foolish. Kids?

  A bunch of louts in our fifties,

 

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