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Multitudinous Heart

Page 16

by Carlos Drummond de Andrade


  since the worth of man

  is a human measure?

  How does man die?

  How does he begin to?

  Is his death a self-

  consuming hunger?

  Does he die with each step?

  Does he die when he sleeps?

  Does he die when he dies?

  Does the death of man

  resemble the gum

  he chews, the punch

  he sips, the sleep

  he plays at, unsure

  if he’s near or far?

  Dying, does man dream?

  Why does man die?

  Does he seek a form

  of existing without life?

  Does he divine a different,

  unrepeating life

  in some crazy horizon?

  Does he seek another man?

  Why, if death and man

  walk hand in hand,

  are the hours of man

  so comical?

  But what is man?

  Does he, fearing death,

  kill himself without fear?

  Or is fear what kills him

  with a silver dagger,

  the slipknot of his tie,

  a leap off the bridge?

  Why does man live?

  What forces him, an innocent

  prisoner, to keep going?

  How does man live,

  if he really lives?

  What does his brow hide?

  Why doesn’t he tell,

  at least in an undertone,

  the whole of his secret self?

  Why does man lie?

  desperately lie

  and lie and lie?

  Why doesn’t he hush,

  if falseness speaks

  in all he feels?

  Why does man cry?

  What tears can ease

  the pain of being man?

  And what pain is man?

  How can a man

  discover he’s hurting?

  Does man have a soul?

  And who put something

  in his soul that destroys it?

  How does man know

  what the soul is, his own

  or another’s?

  What is man good for?

  For fertilizing flowers,

  for spinning stories?

  For serving man?

  For creating God?

  Does God know about man?

  And does the devil know?

  What makes man think

  he’s a destiny, or origin?

  What miracle is man?

  What dream, what shadow?

  But does man exist?

  LIÇÃO DE COISAS / LESSON OF THINGS (1962)

  DESTRUIÇÃO

  Os amantes se amam cruelmente

  e com se amarem tanto não se veem.

  Um se beija no outro, refletido.

  Dois amantes que são? Dois inimigos.

  Amantes são meninos estragados

  pelo mimo de amar: e não percebem

  quanto se pulverizam no enlaçar-se,

  e como o que era mundo volve a nada.

  Nada, ninguém. Amor, puro fantasma

  que os passeia de leve, assim a cobra

  se imprime na lembrança de seu trilho.

  E eles quedam mordidos para sempre.

  Deixaram de existir, mas o existido

  continua a doer eternamente.

  DESTRUCTION

  Lovers love each other cruelly

  and love too much to see each other.

  They kiss, in the other, their own reflection.

  What are two lovers? Two enemies.

  Lovers are children spoiled rotten

  by love’s delights: they don’t realize

  how they crumble with each embrace,

  and how what was world turns into nothing.

  Nothing, nobody. Love’s a pure phantom

  that lightly passes over them,

  like a snake imprinting its path on memory.

  And they both remain forever bitten.

  They’ve ceased to exist, but what existed

  continues to ache eternally.

  CERMICA

  Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

  Sem uso,

  ela nos espia do aparador.

  PORCELAIN

  The shards of life, glued together, form a strange teacup.

  Unused,

  it quietly observes us from the sideboard.

  SCIENCE FICTION

  O marciano encontrou-me na rua

  e teve medo de minha impossibilidade humana.

  Como pode existir, pensou consigo, um ser

  que no existir põe tamanha anulação de existência?

  Afastou-se o marciano, e persegui-o.

  Precisava dele como de um testemunho.

  Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se

  no ar constelado de problemas.

  E fiquei só em mim, de mim ausente.

  SCIENCE FICTION

  A Martian ran into me on the street

  and recoiled at my human impossibility.

  How, he wondered, can there be a being

  who so negates existence in the act of existing?

  The Martian walked off, and I followed.

  I needed him as a kind of proof.

  But he refused to talk, vanishing

  into the problem-studded atmosphere.

  And I was left by myself, absent from myself.

  A FALTA QUE AMA / THE LOVING ABSENCE (1968)

  O DEUS MAL INFORMADO

  No caminho onde pisou um deus

  há tanto tempo que o tempo não lembra

  resta o sonho dos pés

  sem peso

  sem desenho.

  Quem passe ali, na fração de segundo,

  em deus se erige, insciente, deus faminto,

  saudoso de existência.

  Vai seguindo em demanda de seu rastro,

  é um tremor radioso, uma opulência

  de impossíveis, casulos do possível.

  Mas a estrada se parte, se milparte,

  a seta não aponta

  destino algum, e o traço ausente

  ao homem torna homem, novamente.

  THE MISINFORMED GOD

  On the road where a god walked

  so long ago time has forgotten it

  the dream of the god’s feet lingers

  weightless

  traceless.

  Whoever goes that way becomes,

  in a twinkling, a god unawares, a hungry

  god, wistful for existence.

  He keeps on, searching for his ancient

  trail, a glowing tremor, a wealth

  of impossibilities, cocoons of the possible.

  But the road divides into a thousand roads,

  the arrow points

  nowhere, and the vanished trace

  turns man once more into man.

  A VOZ

  Uma canção cantava-se a si mesma

  na rua sem foliões. Vinha no rádio?

  Seu carnaval abstrato, flor de vento,

  era provocação e nostalgia.

  Tudo que já brincou brincava, trêmulo,

  no vazio da tarde. E outros brinquedos,

  futuros, se brincavam, lecionando

  uma lição de festa sem motivo,

  à terra imotivada. E o longo esforço,

  pesquisa de sinal, busca entre sombras,

  marinhagem na rota do divino,

  cede lugar ao que, na voz errante,

  procura introduzir em nossa vida

  certa canção cantada por si mesma.

  THE VOICE

  A song was singing to itself

  on a street without revelers. The radio?

  Its abstract, wind-borne carnival

  stirred excitement and nostalgia.

  All that ever danced was dancing

  in the empty afternoon. And other,

  future dances danced, teaching
/>
  the unmotivated earth that feasting

  needs no motive. And the long struggle,

  the search for signs, the quest among shadows,

  the doubtful voyage toward the divine,

  all yields to what, in a roving voice,

  a certain song that sings itself

  seeks to bring into our life.

  COMUNHÃO

  Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,

  eu no centro.

  Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis

  pela expressão corporal e pelo que diziam

  no silêncio de suas roupas além da moda

  e de tecidos; roupas não anunciadas

  nem vendidas.

  Nenhum tinha rosto. O que diziam

  escusava resposta,

  ficava parado, suspenso no salão, objeto

  denso, tranquilo.

  Notei um lugar vazio na roda.

  Lentamente fui ocupá-lo.

  Surgiram todos os rostos, iluminados.

  COMMUNION

  All my dead were standing in a circle,

  with me in the middle.

  None had a face. I recognized them

  by their body language and by what they said

  in the silence of their clothes beyond fashion

  and fabrics — clothes neither advertised

  nor sold.

  None had a face. What they said

  needed no answer,

  hovering in the room as a peaceful,

  dense object.

  I noticed an empty spot in the circle.

  I slowly went and filled it.

  All the faces lit up, visible.

  AS IMPUREZAS DO BRANCO / IMPURITIES OF WHITE (1973)

  DECLARAÇÃO EM JUÍZO

  Peço desculpa de ser

  o sobrevivente.

  Não por longo tempo, é claro.

  Tranquilizem-se.

  Mas devo confessar, reconhecer

  que sou sobrevivente.

  Se é triste/cômico

  ficar sentado na plateia

  quando o espetáculo acabou

  e fecha-se o teatro,

  mais triste/grotesco é permanecer no palco,

  ator único, sem papel,

  quando o público já virou as costas

  e somente baratas

  circulam no farelo.

  Reparem: não tenho culpa.

  Não fiz nada para ser

  sobrevivente.

  Não roguei aos altos poderes

  que me conservassem tanto tempo.

  Não matei nenhum dos companheiros.

  Se não saí violentamente,

  se me deixei ficar ficar ficar,

  foi sem segunda intenção.

  Largaram-me aqui, eis tudo,

  e lá se foram todos, um a um,

  sem prevenir, sem me acenar,

  sem dizer adeus, todos se foram.

  (Houve os que requintaram no silêncio.)

  Não me queixo. Nem os censuro.

  Decerto não houve propósito

  de me deixar entregue a mim mesmo,

  perplexo,

  desentranhado.

  Não cuidaram de que um sobraria.

  Foi isso. Tornei, tornaram-me

  sobre-vivente.

  Se se admiram de eu estar vivo,

  esclareço: estou sobrevivo.

  Viver, propriamente, não vivi

  senão em projeto. Adiamento.

  Calendário do ano próximo.

  Jamais percebi estar vivendo

  quando em volta viviam quantos! quanto.

  Alguma vez os invejei. Outras, sentia

  pena de tanta vida que se exauria no viver,

  enquanto o não viver, o sobreviver

  duravam, perdurando.

  E me punha a um canto, à espera,

  contraditória e simplesmente,

  de chegar a hora de também

  viver.

  Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,

  testes, ilustrações. A verdadeira vida

  sorria longe, indecifrável.

  Desisti. Recolhi-me

  cada vez mais, concha, à concha. Agora

  sou sobrevivente.

  Sobrevivente incomoda

  mais que fantasma. Sei: a mim mesmo

  incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.

  Por mais que me esconda, projeto-me,

  devolvo-me, provoco-me.

  Não adianta ameaçar-me. Volto sempre,

  todas as manhãs me volto, viravolto

  com exatidão de carteiro que distribui más notícias.

  O dia todo é dia

  de verificar o meu fenômeno.

  Estou onde não estão

  minhas raízes, meu caminho:

  onde sobrei,

  insistente, reiterado, aflitivo

  sobrevivente

  da vida que ainda

  não vivi, juro por Deus e o Diabo, não vivi.

  Tudo confessado, que pena

  me será aplicada, ou perdão?

  Desconfio nada pode ser feito

  a meu favor ou contra.

  Nem há técnica

  de fazer, desfazer

  o infeito infazível.

  Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.

  Cumpre reconhecer-me esta qualidade

  que finalmente o é. Sou o único, entendem?

  de um grupo muito antigo

  de que não há memória nas calçadas

  e nos vídeos.

  Único a permanecer, a dormir,

  a jantar, a urinar,

  a tropeçar, até mesmo a sorrir

  em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,

  como neste momento estou sorrindo

  de ser — delícia? — sobrevivente.

  É esperar apenas, está bem?

  que passe o tempo de sobrevivência

  e tudo se resolva sem escândalo

  ante a justiça indiferente.

  Acabo de notar, e sem surpresa:

  não me ouvem no sentido de entender,

  nem importa que um sobrevivente

  venha contar seu caso, defender-se

  ou acusar-se, é tudo a mesma

  nenhuma coisa, e branca.

  DECLARATION IN COURT

  I beg pardon for being

  the survivor.

  Not for long, of course.

  Set your minds at rest.

  But I have to acknowledge, to confess,

  I’m a survivor.

  If it’s sad and comical

  to keep sitting in the auditorium

  after the show has ended

  and the theater is closing,

  it’s sadder, and grotesque, to be the sole actor

  left onstage, without a role,

  after the audience has all gone home

  and only cockroaches

  circulate in the sawdust.

  Please note: it’s not my fault.

  I didn’t do anything to be

  a survivor.

  I didn’t beseech the powers on high

  to keep me going this long.

  I didn’t kill any companions.

  If I didn’t make a noisy exit,

  if I just stayed on and on and on,

  I had no ulterior motive.

  They left me here, that’s all.

  One by one they went away,

  without warning, without waving at me,

  without saying farewell, they disappeared.

  (Some were veritable masters of silence.)

  I’m not complaining. Nor do I reproach them.

  It surely wasn’t their intention

  to leave me all on my own,

  at a loss,

  defenseless.

  They didn’t realize that one man would remain.

  That’s how I turned into — or they turned me into—

  a remainder, a leftover.

  If it amazes you that I’m still living,

  let me clarify: I’m j
ust outliving.

  I never really lived except

  in plans and projects. Postponements.

  Next year’s calendar.

  I never saw the point of living

  when so many around me lived so much!

  Sometimes I envied them. Sometimes I felt sorry

  to see so much life used up by living

  when not-living, outliving,

  is what endured.

  And I stood in a corner,

  simply and inconsistently

  waiting for my turn

  to live.

  It never came. Cross my heart. There were rehearsals,

  trial runs, illustrations, that’s all. Real life

  smiled from afar, inscrutable.

  I gave up. I withdrew

  more and more, like a shellfish into its shell. Now

  I’m a survivor.

  A survivor is more disconcerting

  than a ghost. I know: I disconcert myself.

  One’s own reflection is a ruthless accuser.

  However much I hide from the world, I project

  my own person, who looks back and taunts me.

  It’s useless to threaten him. He always returns,

  every morning I return, I come back to me

  with the regularity of a postman bringing bad news.

  Every single day

  confirms the strange phenomenon that’s me.

  My roots and my path

  are not where I am,

  where I’ve ended up,

  a persistent, redundant, nagging

  survivor

  of the life I still haven’t

  lived, I swear to God and the Devil, I never lived.

  Now that I’ve confessed, what will be

  my punishment, or my pardon?

  My hunch is nothing can be done

  for or against me.

  How to do or undo

  the undoable not-done?

  If I’m a survivor, I’m a survivor.

  You have to allow me at least

  this quality. I’m the only one, you see,

  of a very old group

  unremembered on the streets

  and in video films.

  Only I still linger, sleep,

  dine, urinate,

  stumble, and even smile

  at odd moments, I assure you I smile,

  like now, for instance, when I’m smiling

  for being (with relish?) a survivor.

  I’m just waiting — all right?—

  for this time of surviving to end

  and for everything to conclude without scandal

  in the eyes of indifferent justice.

  I’ve just noticed, without surprise,

  that you hear but don’t care if you understand me,

  nor does it matter that a survivor

  has come to present his case, to defend

 

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