Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
HAND IN HAND
I won’t be the poet of a decrepit world.
Nor will I sing the world of the future.
I’m bound to life, and I look at my companions.
They’re taciturn but nourish great hopes.
In their midst, I consider capacious reality.
The present is so large, let’s not stray far.
Let’s stay together and go hand in hand.
I won’t be the singer of some woman, some tale,
I won’t evoke the sighs at dusk, the scene outside the window,
I won’t distribute drugs or suicide letters,
I won’t flee to the islands or be carried off by seraphim.
Time is my matter, present time, present people,
the present life.
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
YOU CARRY THE WORLD ON YOUR SHOULDERS
A time comes when you stop saying: my God.
A time of absolute purification.
A time when you stop saying: my love.
Because love proved to be useless.
And your eyes don’t cry.
And your hands weave only rough work.
And your heart has withered.
Women knock on your door in vain, you won’t open.
You’re all alone, the light is out,
but in the darkness your eyes shine enormous.
You’re certainty itself, you can no longer suffer.
And you expect nothing from your friends.
So what if you’re getting old? What’s old age?
You carry the world on your shoulders,
and it weighs no more than a child’s hand.
Wars, famines, squabbles inside buildings
prove only that life goes on
and many people have yet to free themselves.
Some (the squeamish) find the spectacle
barbaric and would prefer to die.
A time has come when dying serves no purpose.
A time has come when life is an order.
Life, just life, without mystification.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
INTERNATIONAL SYMPOSIUM ON FEAR
For the time being we won’t sing of love,
which has fled beyond all undergrounds.
We’ll sing of fear, which sterilizes all hugs.
We won’t sing of hatred, since it doesn’t exist,
only fear exists, our father and our companion,
the dread fear of hinterlands, oceans, deserts,
the fear of soldiers, fear of mothers, fear of churches,
we’ll sing of the fear of dictators, of democrats,
we’ll sing of the fear of death and what’s after death,
then we’ll die of fear,
and fearful yellow flowers will sprout on our tombs.
ELEGIA 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
ELEGY 1938
You work without joy for a worn-out world
whose forms and actions set no example.
You laboriously perform the universal motions,
you feel heat and cold, lack of money, hunger, and sexual desire.
Heroes fill the city parks where you drag your feet,
and they preach virtue, renunciation, fortitude, vision.
At night, if it drizzles, they open bronze umbrellas
or retreat to the tomes of sinister libraries.
You love the night for its power to annihilate
and you know, when you sleep, the problems stop requiring you to die.
But you fatally wake up to the Great Machine existing,
and once more you stand, minuscule, next to inscrutable palms.
You walk among dead people and with them you talk
about things of the future and matters of the spirit.
Literature has ruined your best hours of love.
You’ve wasted time for sowing, too much time, on the phone.
Proudhearted, you’re in a hurry to confess your defeat
and postpone collective happiness
for another century.
You accept the rain, the war, unemployment, and unfair distribution
because you can’t, by yourself, blow up the island of Manhattan.
JOSÉ / JOSÉ (1942)
A BRUXA
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto …
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que leem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
THE MOTH
In this city of Rio,
home to two million people,
I’m alone in my room,
I’m alone in America.
Am I really alone?
Just now a sound
announced life at my side.
Not human life, true,
but it’s life. And I feel the moth
caught in the zone of light.
Two million people!
And I wouldn’t need that much …
I’d just need a friend,
one of those quiet, distant
friends who read Horace
but secretly influence
our life, our loves, our flesh.
I’m alone, without a friend,
and at this late hour
how can I find one?
And I wouldn’t need that much.
I’d just need a woman
to be here, this minute,
to accept this affection
and save from annihilation
the mad minute of mad affection
I have to offer.
Among two million people,
how many women
must be staring in the mirror
counting up the lost years
until morning arrives
with milk, the paper, some calm.
But how can I find a woman
at this desolate hour?
This city of Rio!
I’m full of tender words,
I know animal sounds,
I know the wildest kisses,
I’ve traveled, fought, and learned.
I’m surrounded by eyes,
by hands, affections, yearnings.
But if I try to reach out,
there’s nothing but night
and a frightful solitude.
Companions, hear me!
That agitated presence
trying to break through the night
isn’t just the moth.
It’s the softly panting
secret of a man.
O BOI
Ó solidão do boi no campo,
ó solidão do homem na rua!
Entre carros, trens, telefones,
entre gritos, o ermo profundo.
Ó solidão do boi no campo,
ó milhões sofrendo sem praga!
Se há noite ou sol, é indiferente,
a escuridão rompe com o dia.
Ó solidão do boi no campo,
homens torcendo-se calados!
A cidade é inexplicável
e as casas não têm sentido algum.
Ó solidão do boi no campo!
O navio-fantasma passa
em silêncio na rua cheia.
Se uma tempestade de amor caísse!
As mãos unidas, a vida salva …
Mas o tempo é firme. O boi é só.
No campo imenso a torre de petróleo.
THE OX
O solitude of the ox in the field,
O solitude of the man in the street!
Amid cars, trains, telephones
and shouts, a wilderness …
O solitude of the ox in the field,
O millions suffering without any scourge!
Night or sunlight, it’s all the same:
darkness begins with the dawn.
O solitude of the ox in the field,
people writhing without a sound!
The city defies all explanation,
and the houses have no meaning.
O solitude of the ox in the field!
The ghost ship sails in silence
down the crowded street.
If only a storm of love would strike!
Hands joined together, life saved …
But the weather is still. The ox is alone.
In the sprawling field a towering oil rig.
TRISTEZA NO CÉU
No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.
Os anjos olham-no com reprovação,
e plumas caem.
Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor
caem, são plumas.
Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.
SADNESS IN HEAVEN
There’s also a melancholy hour in heaven.
A difficult hour, when souls are seized by doubt.
“Why did I make the world?” God asks himself,
and answers: “I don’t know.”
The angels glare at him,
and feathers fall.
All the hypotheses — grace, eternity, love—
are feathers and fall.
One more feather, and heaven will collapse.
Softly, with no bang to announce
the moment between everything and nothing,
the sadness of God …
VIAGEM NA FAMÍLIA
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro?
Porém nada dizia.
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína
desprezo frio, umidade.
Porém nada dizia.
A rua que atravessava
/> a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas histórias de amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia.
Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
sutilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia.
Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reação.
Porém ficava calada.
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos …
Senti que me perdoava
Multitudinous Heart Page 4