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Multitudinous Heart

Page 6

by Carlos Drummond de Andrade


  no espaço.

  Chega mais perto e contempla as palavras.

  Cada uma

  tem mil faces secretas sob a face neutra

  e te pergunta, sem interesse pela resposta,

  pobre ou terrível, que lhe deres:

  Trouxeste a chave?

  Repara:

  ermas de melodia e conceito,

  elas se refugiaram na noite, as palavras.

  Ainda úmidas e impregnadas de sono,

  rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

  IN SEARCH OF POETRY

  Don’t write poems about what happened.

  Birth and death don’t exist for poetry.

  Life, next to it, is a static sun

  giving off no warmth or light.

  Affinities, birthdays, and personal incidents don’t count.

  Don’t write poetry with the body,

  the noble, complete, and comfortable body, inimical to lyrical effusions.

  Your drop of bile, your joyful grin, your frown of pain in the dark

  are irrelevant.

  Don’t tell me your feelings,

  which exploit ambiguity and take the long way around.

  What you think and feel is not yet poetry.

  Don’t sing about your city, leave it in peace.

  Poetry’s song is not the clacking of machines or the secrets of houses.

  It’s not music heard in passing, not the rumble of ocean on streets near the breaking foam.

  Its song is not nature

  or humans in society.

  Rain and night, fatigue and hope, mean nothing to it.

  Poetry (don’t extract poetry from things)

  elides subject and object.

  Don’t dramatize, don’t invoke,

  don’t inquire. Don’t waste time lying.

  Don’t get cross.

  Your ivory yacht, your diamond shoe,

  your mazurkas and superstitions, your family skeletons

  all vanish in the curve of time, they’re worthless.

  Don’t reconstruct

  your gloomy, long-buried childhood.

  Don’t shift back and forth between

  the mirror and your fading memory.

  What faded wasn’t poetry.

  What shattered wasn’t crystal.

  Soundlessly enter the kingdom of words.

  The poems are there, waiting to be written.

  Though paralyzed, they don’t despair,

  their virgin surfaces are cool and calm.

  Look at them: tongue-tied, alone, in the dictionary state.

  Spend time with your poems before you write them.

  Be patient, if they’re obscure. Calm, if they provoke you.

  Wait for each one to take shape and reach perfection

  with its power of language

  and its power of silence.

  Don’t force the poem to break out of limbo.

  Don’t pick up the poem that fell to the ground.

  Don’t fawn on the poem. Accept it

  as it will accept its definitive, concentrated form

  in space.

  Move closer and consider the words.

  Each one

  hides a thousand faces under its poker face

  and asks you, without caring how poor or formidable

  your answer might be:

  Did you bring the key?

  Attention:

  destitute of melody and concept,

  words have taken refuge in the night.

  Still damp and heavy with sleep,

  they roll in a rough river and transform into disdain.

  O ELEFANTE

  Fabrico um elefante

  de meus poucos recursos.

  Um tanto de madeira

  tirado a velhos móveis

  talvez lhe dê apoio.

  E o encho de algodão,

  de paina, de doçura.

  A cola vai fixar

  suas orelhas pensas.

  A tromba se enovela,

  é a parte mais feliz

  de sua arquitetura.

  Mas há também as presas,

  dessa matéria pura

  que não sei figurar.

  Tão alva essa riqueza

  a espojar-se nos circos

  sem perda ou corrupção.

  E há por fim os olhos,

  onde se deposita

  a parte do elefante

  mais fluida e permanente,

  alheia a toda fraude.

  Eis meu pobre elefante

  pronto para sair

  à procura de amigos

  num mundo enfastiado

  que já não crê nos bichos

  e duvida das coisas.

  Ei-lo, massa imponente

  e frágil, que se abana

  e move lentamente

  a pele costurada

  onde há flores de pano

  e nuvens, alusões

  a um mundo mais poético

  onde o amor reagrupa

  as formas naturais.

  Vai o meu elefante

  pela rua povoada,

  mas não o querem ver

  nem mesmo para rir

  da cauda que ameaça

  deixá-lo ir sozinho.

  É todo graça, embora

  as pernas não ajudem

  e seu ventre balofo

  se arrisque a desabar

  ao mais leve empurrão.

  Mostra com elegância

  sua mínima vida,

  e não há na cidade

  alma que se disponha

  a recolher em si

  desse corpo sensível

  a fugitiva imagem,

  o passo desastrado

  mas faminto e tocante.

  Mas faminto de seres

  e situações patéticas,

  de encontros ao luar

  no mais profundo oceano,

  sob a raiz das árvores

  ou no seio das conchas,

  de luzes que não cegam

  e brilham através

  dos troncos mais espessos.

  Esse passo que vai

  sem esmagar as plantas

  no campo de batalha,

  à procura de sítios,

  segredos, episódios

  não contados em livro,

  de que apenas o vento,

  as folhas, a formiga

  reconhecem o talhe,

  mas que os homens ignoram,

  pois só ousam mostrar-se

  sob a paz das cortinas

  à pálpebra cerrada.

  E já tarde da noite

  volta meu elefante,

  mas volta fatigado,

  as patas vacilantes

  se desmancham no pó.

  Ele não encontrou

  o de que carecia,

  o de que carecemos,

  eu e meu elefante,

  em que amo disfarçar-me.

  Exausto de pesquisa,

  caiu-lhe o vasto engenho

  como simples papel.

  A cola se dissolve

  e todo seu conteúdo

  de perdão, de carícia,

  de pluma, de algodão,

  jorra sobre o tapete,

  qual mito desmontado.

  Amanhã recomeço.

  THE ELEPHANT

  With my scant resources

  I make an elephant.

  I count on some wood

  from old furniture

  to prop him up.

  And I fill him with cotton,

  silk floss, softness.

  Glue will secure

  his droopy ears.

  His curling trunk

  is the finest part

  of his architecture.

  But he also has tusks

  of that pure white matter

  I can’t imitate.

  A wealth of whiteness

  dragged through circuses

  without loss or corruption.

  And finally there are the eyes,
/>   containing the most

  fluid and permanent

  part of the elephant,

  free of all guile.

  So here’s my poor elephant,

  ready to go out and look

  for friends in a jaded

  world that doesn’t believe

  anymore in animals

  and doubts all things.

  An imposing and fragile

  mass, he sways

  while slowly moving

  his sewn skin, trimmed

  with cloth flowers

  and clouds, allusions

  to a more poetic world

  where love reassembles

  the forms of nature.

  There goes my elephant

  down a crowded street,

  but no one will look

  at him, not even to laugh

  at his tail that threatens

  to stay behind.

  He’s all poise and grace,

  though his legs don’t help,

  and his bloated belly

  risks coming undone

  at the slightest shove.

  With elegance he displays

  his minimal life,

  and not a soul in town

  is willing to take in

  the elusive image

  of that sensitive body,

  its clumsy way of walking,

  poignant with yearning.

  A yearning for emotion

  in people and situations,

  for moonlit encounters

  in the deepest ocean,

  under the roots of trees

  or in the hearts of shells,

  for lights that don’t blind

  but shine through

  the thickest trunks.

  A way of walking

  on the battlefield

  without crushing plants,

  searching for places,

  secrets, and episodes

  not told in books

  but whose existence

  the wind, the leaves,

  and the ant recognize,

  while people are oblivious,

  since only behind the peace

  of curtains, to closed eyelids,

  do they dare show themselves.

  And late in the evening

  my elephant comes home,

  but he comes home tired,

  his paws staggering,

  crumbling in the dust.

  He didn’t find

  what he needed,

  what we both need,

  me and my elephant,

  my dearest disguise.

  Weary of research,

  he sheds like mere paper

  the vast contrivance.

  The glue comes unstuck

  and his entire contents

  of forgiveness and caresses,

  of cotton and feathers,

  spill out onto the rug

  like a dismantled myth.

  Tomorrow I’ll start again.

  IDADE MADURA

  As lições da infância

  desaprendidas na idade madura.

  Já não quero palavras

  nem delas careço.

  Tenho todos os elementos

  ao alcance do braço.

  Todas as frutas

  e consentimentos.

  Nenhum desejo débil.

  Nem mesmo sinto falta

  do que me completa e é quase sempre melancólico.

  Estou solto no mundo largo.

  Lúcido cavalo

  com substância de anjo

  circula através de mim.

  Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios,

  absorvo epopeia e carne,

  bebo tudo,

  desfaço tudo,

  torno a criar, a esquecer-me:

  durmo agora, recomeço ontem.

  De longe vieram chamar-me.

  Havia fogo na mata.

  Nada pude fazer,

  nem tinha vontade.

  Toda a água que possuía

  irrigava jardins particulares

  de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.

  Nisso vieram os pássaros,

  rubros, sufocados, sem canto,

  e pousaram a esmo.

  Todos se transformaram em pedra.

  Já não sinto piedade.

  Antes de mim outros poetas,

  depois de mim outros e outros

  estão cantando a morte e a prisão.

  Moças fatigadas se entregam, soldados se matam

  no centro da cidade vencida.

  Resisto e penso

  numa terra enfim despojada de plantas inúteis,

  num país extraordinário, nu e terno,

  qualquer coisa de melodioso,

  não obstante mudo,

  além dos desertos onde passam tropas, dos morros

  onde alguém colocou bandeiras com enigmas,

  e resolvo embriagar-me.

  Já não dirão que estou resignado

  e perdi os melhores dias.

  Dentro de mim, bem no fundo,

  há reservas colossais de tempo,

  futuro, pós-futuro, pretérito,

  há domingos, regatas, procissões,

  há mitos proletários, condutos subterrâneos,

  janelas em febre, massas de água salgada, meditação e sarcasmo.

  Ninguém me fará calar, gritarei sempre

  que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,

  negociarei em voz baixa com os conspiradores,

  transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,

  serei, no circo, o palhaço,

  serei médico, faca de pão, remédio, toalha,

  serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,

  serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:

  tudo depende da hora

  e de certa inclinação feérica,

  viva em mim qual um inseto.

  Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade

  com sua maré de ciências afinal superadas.

  Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,

  descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.

  Eles dizem o caminho,

  embora também se acovardem

  em face a tanta claridade roubada ao tempo.

  Mas eu sigo, cada vez menos solitário,

  em ruas extremamente dispersas,

  transito no canto do homem ou da máquina que roda,

  aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa,

  e ganho.

  MIDDLE AGE

  Middle age unlearns

  the lessons of childhood.

  I no longer want words,

  or need them.

  I have all the elements

  within my grasp.

  All fruits,

  all approvals.

  Not one faint desire.

  I don’t even miss

  what would complete me and is nearly always melancholy.

  I’m at liberty in the world at large.

  A thinking horse

  made of angel matter

  races through my being.

  I’m dazed by the night, I cross cold lakes,

  I devour adventure and flesh,

  I drink everything,

  destroy everything,

  create all over, forgetting myself:

  now I sleep, and start again yesterday.

  They came to me running and calling.

  The woods were on fire.

  I could do nothing to help,

  nor did I want to.

  Whatever water I had

  was for watering private gardens

  of retired athletes, deaf nuns, and ousted civil servants.

  Birds started arriving,

  bright red, gasping, songless.

  They perched here and there

  before turning into stone.

  I’ve stopped feeling sorry.<
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  Poets before me

  and still more poets after me

  sing of death and prison.

  Girls struggle and give in while soldiers commit suicide

  in the heart of the conquered city.

  I hold out, imagining

  a land finally stripped of useless plants,

  an extraordinary country, naked and tender

  and somehow melodious,

  albeit soundless,

  beyond the deserts where troops march, past the hills

  where someone raised flags emblazoned with riddles,

  and I decide to get drunk.

  No one will ever again say I’m resigned,

  with my best days behind me.

  Deep within me lie

  huge reservoirs of time,

  future, postfuture, and past,

  Sundays, regattas, processions,

  proletarian myths, underground channels,

  feverish windows, deposits of saltwater, reflection, sarcasm.

  No one will silence me, I’ll shout whenever

  joy is stifled, I’ll defend the disheartened,

  I’ll confer with conspirators in a whisper,

  I’ll deliver messages no one dares send or receive,

  I’ll be the clown in the circus,

  I’ll be a doctor, a bread knife, medicine, a towel,

  I’ll be a streetcar, a boat, a shoe store, church, dungeon,

  I’ll be the most ordinary human things, and the most exceptional:

  it all depends on the moment

  and on a certain bent for the fantastical,

  quivering in me like an insect.

  In my eyes, prescriptions, and feet, middle age invades me

  with its torrent of already outdated sciences.

  I can spurn or embrace this institute, that legend.

  I’ve discovered moles on my skin I never noticed at age twenty.

  They’re signs showing the way,

  although they also shrink

  before so much clarity stolen from time.

  But I keep going, less and less solitary,

  on vastly diverging streets.

  I travel in the song of man, in the whirl of machines,

  get bored with so much wealth, bet it all on a house number,

  and win.

  VERSOS À BOCA DA NOITE

  Sinto que o tempo sobre mim abate

  sua mão pesada. Rugas, dentes, calva …

  Uma aceitação maior de tudo,

  e o medo de novas descobertas.

  Escreverei sonetos de madureza?

  Darei aos outros a ilusão de calma?

  Serei sempre louco? sempre mentiroso?

  Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

  Há muito suspeitei o velho em mim.

  Ainda criança, já me atormentava.

  Hoje estou só. Nenhum menino salta

  de minha vida, para restaurá-la.

  Mas se eu pudesse recomeçar o dia!

  Usar de novo minha adoração,

  meu grito, minha fome … Vejo tudo

  impossível e nítido, no espaço.

  Lá onde não chegou minha ironia,

  entre ídolos de rosto carregado,

 

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