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Multitudinous Heart

Page 7

by Carlos Drummond de Andrade

ficaste, explicação de minha vida,

  como os objetos perdidos na rua.

  As experiências se multiplicaram:

  viagens, furtos, altas solidões,

  o desespero, agora cristal frio,

  a melancolia, amada e repelida,

  e tanta indecisão entre dois mares,

  entre duas mulheres, duas roupas.

  Toda essa mão para fazer um gesto

  que de tão frágil nunca se modela,

  e fica inerte, zona de desejo

  selada por arbustos agressivos.

  (Um homem se contempla sem amor,

  se despe sem qualquer curiosidade.)

  Mas vêm o tempo e a ideia de passado

  visitar-te na curva de um jardim.

  Vem a recordação, e te penetra

  dentro de um cinema, subitamente.

  E as memórias escorrem do pescoço,

  do paletó, da guerra, do arco-íris;

  enroscam-se no sono e te perseguem,

  à busca de pupila que as reflita.

  E depois das memórias vem o tempo

  trazer novo sortimento de memórias,

  até que, fatigado, te recuses

  e não saibas se a vida é ou foi.

  Esta casa, que miras de passagem,

  estará no Acre? na Argentina? em ti?

  que palavra escutaste, aonde, quando?

  seria indiferente ou solidária?

  Um pedaço de ti rompe a neblina,

  voa talvez para a Bahia e deixa

  outros pedaços, dissolvidos no atlas,

  em País-do-riso e em tua ama preta.

  Que confusão de coisas ao crepúsculo!

  Que riqueza! sem préstimo, é verdade.

  Bom seria captá-las e compô-las

  num todo sábio, posto que sensível:

  uma ordem, uma luz, uma alegria

  baixando sobre o peito despojado.

  E já não era o furor dos vinte anos

  nem a renúncia às coisas que elegeu,

  mas a penetração no lenho dócil,

  um mergulho em piscina, sem esforço,

  um achado sem dor, uma fusão,

  tal uma inteligência do universo

  comprada em sal, em rugas e cabelo.

  VERSES ON THE BRINK OF EVENING

  I feel time’s heavy hand weigh down

  on me. Wrinkles, bad teeth, baldness …

  A greater acceptance of everything,

  and the fear of new discoveries.

  Will I write sonnets that they call “mature”?

  Will I convey an illusion of calm?

  Will I always be nutty? Always a liar?

  Will I mock the world? Believe in myths?

  For a long time I’ve felt the old man in me.

  He began to harass me in childhood.

  Today I’m alone. No little boy

  jumps out of my life to restore it.

  But if I could start the day all over!

  Dust off my adoration, my shout,

  my hunger … To me all things look

  impossible and clear-cut, in space.

  O explanation of my life,

  you’ve remained, among stern idols,

  beyond the pale of my irony,

  like an object lost on the street.

  My experiences have multiplied:

  journeys, thefts, deep solitudes,

  despair (today cold crystal),

  melancholy (cherished and resisted),

  and so much indecision between

  two seas, two women, two items of clothing.

  This entire hand to trace a gesture

  so feeble it never takes shape,

  it languishes, a zone of desire

  sealed off by hostile shrubs …

  (A man looks at himself without love,

  undresses with no curiosity.)

  But time and the idea of the past

  surprise you in the curve of a garden.

  Remembrance comes, it wells up

  without warning in the movie theater.

  And the memories stream from your neck,

  from your jacket, the war, the rainbow;

  they take root in your sleep and hound you,

  in search of a lens to reflect them.

  And after those memories, time

  arrives with a new batch of memories,

  until you’re so weary you balk

  and don’t know if life is or was.

  Is this house that grabs your attention

  in Acre? In Argentina? In you?

  What word did you hear, and where, when?

  Was it indifferent or heartfelt?

  A piece of you breaks out of the mist,

  flying perhaps to Bahia, while other

  pieces vanish into the atlas,

  the Country of Laughter, and your black nanny.

  What a jumble of things at twilight!

  What a treasure! Useless, it’s true.

  Oh, if all those things could be arranged

  into a well-reasoned yet sensitive whole:

  an order, a light, a happiness

  settling on the ravaged breast …

  Not the passion of the twenty-year-old

  nor renunciation of the things he chose,

  but penetration into yielding wood,

  an effortless plunging into a pool,

  a painless discovery, a fusion, something

  like an intelligence of the universe

  purchased with salt, wrinkles, and hair.

  RETRATO DE FAMÍLIA

  Este retrato de família

  está um tanto empoeirado.

  Já não se vê no rosto do pai

  quanto dinheiro ele ganhou.

  Nas mãos dos tios não se percebem

  as viagens que ambos fizeram.

  A avó ficou lisa, amarela,

  sem memórias da monarquia.

  Os meninos, como estão mudados.

  O rosto de Pedro é tranquilo,

  usou os melhores sonhos.

  E João não é mais mentiroso.

  O jardim tornou-se fantástico.

  As flores são placas cinzentas.

  E a areia, sob pés extintos,

  é um oceano de névoa.

  No semicírculo das cadeiras

  nota-se certo movimento.

  As crianças trocam de lugar,

  mas sem barulho: é um retrato.

  Vinte anos é um grande tempo.

  Modela qualquer imagem.

  Se uma figura vai murchando,

  outra, sorrindo, se propõe.

  Esses estranhos assentados,

  meus parentes? Não acredito.

  São visitas se divertindo

  numa sala que se abre pouco.

  Ficaram traços da família

  perdidos no jeito dos corpos.

  Bastante para sugerir

  que um corpo é cheio de surpresas.

  A moldura deste retrato

  em vão prende suas personagens.

  Estão ali voluntariamente,

  saberiam — se preciso — voar.

  Poderiam sutilizar-se

  no claro-escuro do salão,

  ir morar no fundo dos móveis

  ou no bolso de velhos coletes.

  A casa tem muitas gavetas

  e papéis, escadas compridas.

  Quem sabe a malícia das coisas,

  quando a matéria se aborrece?

  O retrato não me responde,

  ele me fita e se contempla

  nos meus olhos empoeirados.

  E no cristal se multiplicam

  os parentes mortos e vivos.

  Já não distingo os que se foram

  dos que restaram. Percebo apenas

  a estranha ideia de família

  viajando através da carne.

  FAMILY PORTRAIT

  This family portrait is looking

  dusty. You can no longer see,

  in my father’s face, how much

  money
he managed to make.

  The travels of my two uncles

  aren’t apparent in their hands.

  No memory’s left of the monarchy

  in Grandma, smoothed and yellowed.

  The boys, how they’ve changed.

  Pedro’s face is peaceful,

  reflecting only good dreams.

  And João is no longer a liar.

  The garden has become surreal.

  The flowers are gray disks.

  And the sand, under deceased

  feet, is a sea of fog.

  In the semicircle of chairs

  some movement can be noted.

  The kids are trading places,

  but without a sound: it’s a photo.

  Twenty years is a long time,

  enough to rework any image.

  If one figure slowly fades,

  another asserts itself, smiling.

  Those strangers sitting there

  are my relatives? I don’t believe it.

  They’re visitors having fun

  in a living room rarely used.

  Certain family traits

  have survived in their bodily

  postures, enough to suggest

  that a body is full of surprises.

  In vain the frame encases

  the people in this portrait.

  They are there voluntarily

  and could fly away, if necessary.

  They could dissipate into

  the room’s chiaroscuro,

  or go live in the nooks of furniture

  or in the pockets of old vests.

  The house has lots of drawers

  and papers, long flights of stairs.

  What sort of trick might things,

  bored with matter, resort to?

  The portrait doesn’t answer.

  It stares at me and observes

  itself in my dusty eyes.

  My dead and living relatives

  proliferate in the glass.

  I’ve lost track of who went,

  who stays. All I grasp

  is the strange idea of family

  moving through the flesh.

  MOVIMENTO DA ESPADA

  Estamos quites, irmão vingador.

  Desceu a espada

  e cortou o braço.

  Cá está ele, molhado em rubro.

  Dói o ombro, mas sobre o ombro

  tua justiça resplandece.

  Já podes sorrir, tua boca

  moldar-se em beijo de amor.

  Beijo-te, irmão, minha dívida

  está paga.

  Fizemos as contas, estamos alegres.

  Tua lâmina corta, mas é doce,

  a carne sente, mas limpa-se.

  O sol eterno brilha de novo

  e seca a ferida.

  Mutilado, mas quanto movimento

  em mim procura ordem.

  O que perdi se multiplica

  e uma pobreza feita de pérolas

  salva o tempo, resgata a noite.

  Irmão, saber que és irmão,

  na carne como nos domingos.

  Rolaremos juntos pelo mar …

  Agasalhado em tua vingança,

  puro e imparcial como um cadáver que o ar embalsamasse,

  serei carga jogada às ondas,

  mas as ondas, também elas, secam,

  e o sol brilha sempre.

  Sobre minha mesa, sobre minha cova, como brilha o sol!

  Obrigado, irmão, pelo sol que me deste,

  na aparência roubando-o.

  Já não posso classificar os bens preciosos.

  Tudo é precioso …

  e tranquilo

  como olhos guardados nas pálpebras.

  SWIPE OF THE SWORD

  We’re even, brother, you got your revenge.

  Down came the sword

  and off came my arm.

  Here it is, dripping red.

  My shoulder hurts, but upon it

  your justice gleams.

  Now you can smile, molding your lips

  into a loving kiss.

  I kiss you, brother,

  my debt is paid.

  We’ve settled accounts, we’re happy.

  Your blade cuts but is sweet,

  my flesh aches but will heal.

  The eternal sun shines again

  and dries the wound.

  I’m mutilated, yes, but so much

  movement in me seeks order.

  What I’ve lost is multiplied,

  and a poverty made of pearls

  redeems time, saves the night.

  Now I know you’re a brother,

  in the flesh as well as on Sundays.

  We’ll roll together in the sea …

  Wrapped in your revenge,

  pure and impartial as a corpse embalmed by air,

  I’ll be cargo tossed to the waves,

  but the waves dry up too,

  and the sun always shines.

  On my table, on my grave, how the sun shines!

  Thank you, brother, for the sun you gave me

  when it seemed you were taking it away.

  I can no longer classify precious things.

  Everything is precious …

  and peaceful

  like eyes ensconced behind eyelids.

  ROLA MUNDO

  Vi moças gritando

  numa tempestade.

  O que elas diziam

  o vento largava,

  logo devolvia.

  Pávido escutava,

  não compreendia.

  Talvez avisassem:

  mocidade é morta.

  Mas a chuva, mas o choro,

  mas a cascata caindo,

  tudo me atormentava

  sob a escureza do dia,

  e vendo,

  eu pobre de mim não via.

  Vi moças dançando

  num baile de ar.

  Vi os corpos brandos

  tornarem-se violentos

  e o vento os tangia.

  Eu corria ao vento,

  era só umidade,

  era só passagem

  e gosto de sal.

  A brisa na boca

  me entristecia

  como poucos idílios

  jamais o lograram;

  e passando,

  por dentro me desfazia.

  Vi o sapo saltando

  uma altura de morro;

  consigo levava

  o que mais me valia.

  Era algo hediondo

  e meigo: veludo,

  na mole algidez

  parecia roubar

  para devolver-me

  já tarde e corrupta,

  de tão babujada,

  uma velha medalha

  em que dorme teu eco.

  Vi outros enigmas

  à feição de flores

  abertas no vácuo.

  Vi saias errantes

  demandando corpos

  que em gás se perdiam,

  e assim desprovidas

  mais esvoaçavam,

  tornando-se roxo,

  azul de longa espera,

  negro de mar negro.

  Ainda se dispersam.

  Em calma, longo tempo,

  nenhum tempo, não me lembra.

  Vi o coração de moça

  esquecido numa jaula.

  Excremento de leão,

  apenas. E o circo distante.

  Vi os tempos defendidos.

  Eram de ontem e de sempre,

  e em cada país havia

  um muro de pedra e espanto,

  e nesse muro pousada

  uma pomba cega.

  Como pois interpretar

  o que os heróis não contam?

  Como vencer o oceano

  se é livre a navegação

  mas proibido fazer barcos?

  Fazer muros, fazer versos,

  cunhar moedas de chuva,

  inspecionar os faróis

  para evitar que se acendam,

  e devolv
er os cadáveres

  ao mar, se acaso protestam,

  eu vi; já não quero ver.

  E vi minha vida toda

  contrair-se num inseto.

  Seu complicado instrumento

  de voo e de hibernação,

  sua cólera zumbidora,

  seu frágil bater de élitros,

  seu brilho de pôr de tarde

  e suas imundas patas …

  Joguei tudo no bueiro.

  Fragmentos de borracha

  e

  cheiro de rolha queimada:

  eis quanto me liga ao mundo.

  Outras riquezas ocultas,

  adeus, se despedaçaram.

  Depois de tantas visões

  já não vale concluir

  se o melhor é deitar fora

  a um tempo os olhos e os óculos.

  E se a vontade de ver

  também cabe ser extinta,

  se as visões, interceptadas,

  e tudo mais abolido.

  Pois deixa o mundo existir!

  Irredutível ao canto,

  superior à poesia,

  rola, mundo, rola, mundo,

  rola o drama, rola o corpo,

  rola o milhão de palavras

  na extrema velocidade,

  rola-me, rola meu peito,

  rola os deuses, os países,

  desintegra-te, explode, acaba!

  ROLL, WORLD, ROLL

  I saw girls shouting

  in a thunderstorm.

  What they were saying

  the wind blew away,

  then back again.

  Alarmed, I listened

  but understood nothing.

  Perhaps they announced

  that youth is dead.

  But the rain, but the crying,

  but the crashing cascade

  were a torment to me

  beneath the dark sky,

  and while seeing it all,

  I still couldn’t see.

  I saw girls dancing

  a dance of pure air.

  I saw their soft bodies

  becoming violent things

  strummed by the wind.

  I ran in the wind:

  there was only wetness,

  whooshing, and the taste

  of salt.

  The wind in my mouth

  stirred up a sadness

  that few of my loves

  have ever aroused,

  and its gusting

  tore me up inside.

  I saw a toad jumping

  high as a hill,

  and it carried away

  what most mattered to me.

  A meek and velvety,

  hideous creature,

  it seemed to steal

  in its clammy coldness

  an old medal of mine

  where your echo sleeps,

  a medal it would later

  give back, but too late,

  and corroded by drool.

  I saw other riddles

  like so many flowers

  abloom in the void.

  I saw skirts glide by

  in search of bodies

  disappearing in gas,

  and so, without wearers,

  they fluttered all the more,

 

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