you don’t tell your husband or lover.
Cautious Márgara smiles at me,
and hand in hand we walk in the night,
a boy-man and a woman-man,
parading through the dark streets
our discontent with the malformed world.
O PADRE PASSA NA RUA
Beijo a mão do padre
a mão de Deus
a mão do céu
beijo a mão do medo
de ir para o inferno
o perdão
de meus pecados passados e futuros
a garantia de salvação
quando o padre passa na rua
e meu destino passa com ele
negro
sinistro
irretratável
se eu não beijar a sua mão.
THE PRIEST WALKS DOWN THE STREET
I kiss the hand of the priest
the hand of God
the hand of heaven
I kiss the hand of fear
of going to hell
forgiveness
for my past and future sins
the promise of salvation
when the priest walks down the street
and my fate walks with him
black
sinister
irrevocable
if I don’t kiss his hand.
CONFISSÃO
Na pequena cidade
não conta seu pecado.
É terrível demais para contar
nem merece perdão.
Conta as faltas simples
e guarda seu segredo de seu mundo.
A eterna penitência:
três padres-nossos, três ave-marias.
Não diz o padre, é como se dissesse:
— Peque o simples, menino, e vá com Deus.
O pecado graúdo
acrescido do outro de omiti-lo
aflora noite alta
em avenidas úmidas de lágrimas,
escorpião mordendo a alma
na pequena cidade.
Cansado de estar preso
um dia se desprende no colégio
e se confessa, hediondo.
— Mas você tem certeza de que fez
o que pensa que fez, ou sonha apenas?
Há pecados maiores do que nós.
Em vão tentamos cometê-los, ainda é cedo.
Vá em paz com seus pecados simples,
reze três padres-nossos, três ave-marias.
CONFESSION
In that small town
he doesn’t tell his sin.
It’s too terrible to tell
and doesn’t deserve forgiveness.
He tells his little misdeeds
and hides the secret of his world.
The eternal penance:
three Our Fathers and three Hail Marys.
The priest doesn’t say it, but it’s as if he said,
“Stick to little sins, son, and God be with you.”
His big sin,
compounded by the sin of not telling it,
rears its head at night
on tear-soaked avenues,
a scorpion gnawing at his soul
in that small town.
Tired of being enchained,
one day at school he breaks loose
and tells the awful truth in confession.
“But are you certain of having done
what you think you did, or are you just dreaming?
There are sins bigger than we are,
and in vain we try to commit them. You’re still young.
“Go in peace with your little sins.
Say three Our Fathers and three Hail Marys.”
A PUTA
Quero conhecer a puta.
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na Rua de Baixo
onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
e labaredas torram a língua
de quem disser: Eu quero
a puta
quero a puta quero a puta.
Ela arreganha dentes largos
de longe. Na mata do cabelo
se abre toda, chupante
boca de mina amanteigada
quente. A puta quente.
É preciso crescer
esta noite a noite inteira sem parar
de crescer e querer
a puta que não sabe
o gosto do desejo do menino
o gosto menino
que nem o menino
sabe, e quer saber, querendo a puta.
THE WHORE
I want to know the whore.
The town whore. The only one.
The supplier.
On Lower Street,
where we’re not allowed to go.
Where the air is burning glass
and flames sear the tongue
of whoever says: I want
the whore
I want the whore I want the whore.
She bares large teeth
from afar. In her forest of hair
she opens wide the sucking
mouth of a hot buttery
mine. The hot whore.
I’ve got to grow
tonight all night unceasingly
to grow and to want
the whore who doesn’t know
the taste of the boy’s desire,
the boyish taste
not even the boy knows,
and he wants to know, wanting the whore.
TRÊS NO CAFÉ
No café semideserto
a mosca tenta
pousar no torrão de açúcar sobre o mármore.
Enxoto-a. Insiste. Enxoto-a.
A luz é triste, amarela, desanimada.
Somos dois à espera
de que o garçom, mecânico, nos sirva.
Olho para o companheiro até a altura da gravata.
Não ouso subir ao rosto marcado.
Fixo-me na corrente do relógio
presa ao colete; velhos tempos.
Pouco falamos. O som das xícaras,
quase uma conversa. Tão raro
assim nos encontrarmos frente a frente
mais que por minutos.
Mais raro ainda,
na banalidade do café.
A mosca volta.
Já não a espanto. Queda entre nós,
partícipe de mútuo entendimento.
Então, é este o mesmo homem
de antes de eu nascer
e de amanhã e sempre?
Curvado.
Seu olhar é cansaço de existência,
ou sinto já (nem pensar) a sua morte?
Este estar juntos no café,
não hei de esquecê-lo nunca, de tão seco
e desolado — os três
eu, ele, a mosca—:
imagens de mera circunstância
ou do obscuro
irreparável sentido de viver.
THREESOME IN A CAFÉ
In the half-empty café
a fly circling over the marble table
tries to land on a lump of sugar.
I shoo it away. It insists. I shoo it away.
The lighting is sad, yellow, discouraged.
There are two of us waiting
to be served by the mechanical waiter.
I look at my companion as far up as his necktie.
I don’t dare go as high as his furrowed face.
I fix my eyes on the watch chain
attached to his vest: the old days.
We hardly talk. The clinking of our teacups,
a quasi-conversation. It’s rare
for us to meet like this, face to face,
for more than a few minutes.
Rarer still,
in the banal setting of a café.
The fly returns.
I no longer fight it. It sits between us,
partaking in our mutual understanding.
So is this the sa
me man
from when I wasn’t yet born,
from tomorrow and forever?
Hunched over.
Weariness of existing fills his gaze,
or do I already feel (God forbid) his death?
I’ll surely never forget this time spent
together, so arid and desolate, here
in this café, the three of us:
me, him, the fly: images
of mere circumstance
or of the obscure
irreparable meaning of life.
CORPO / BODY (1984)
AS CONTRADIÇÕES DO CORPO
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.
Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seu patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.
O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.
Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.
Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.
Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.
Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.
Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.
Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.
Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.
THE BODY’S CONTRADICTIONS
My body’s not my body,
it’s the illusion of another
being. A master at the art
of hiding me, it even
hides me from myself.
My body’s not my agent.
It’s my sealed envelope,
a threatening gun,
and finally my jailer:
it knows me better than I do.
My body deletes the memory
I once had of my mind.
It plants in me its pathos,
which strikes, wounds, condemns me
for crimes I didn’t commit.
Its most diabolical trick
is to make itself sick, forcing
me to bear the weight
of each new ache it weaves
and passes to me in disgust.
That’s why my body invented
pain: to make it internal,
an integral part of my id,
where it dims the light that tried
to spread into every corner.
At times my body has fun
without my knowledge and against
my will, and as the vicious
pleasure runs through its cells,
it laughs at my nonreaction.
Ordering me to go out
in search of what I don’t want,
it negates my ego, affirming
itself to be lord of my I,
reduced to a servile dog.
Instead of me, my greedy
body is the one that feels
my most exquisite pleasure,
giving only chewed-up scraps
to my unsatiated hunger.
If I try to get away
by thinking of abstract things,
it comes back to me with all
the weight of its filthy flesh,
its boredom and discomfort.
I want to break with my body,
I want to confront and accuse it
for having annulled my essence,
but it goes off on its own
and doesn’t even hear me.
Constantly pressed by its pulse
that never misses a beat,
I’m not who I used to be:
led by its sensual step,
I go dancing with my body.
O MINUTO DEPOIS
Nudez, último véu da alma
que ainda assim prossegue absconsa.
A linguagem fértil do corpo
não a detecta nem decifra.
Mais além da pele, dos músculos,
dos nervos, do sangue, dos ossos,
recusa o íntimo contato,
o casamento floral, o abraço
divinizante da matéria
inebriada para sempre
pela sublime conjunção.
Ai de nós, mendigos famintos:
Pressentimos só as migalhas
desse banquete além das nuvens
contingentes de nossa carne.
E por isso a volúpia é triste
um minuto depois do êxtase.
THE MINUTE AFTER
With only nakedness, its final
veil, the soul’s still out of reach.
The body’s fertile language
can’t detect or interpret it.
Beyond the skin, muscles,
nerves, blood, and bones,
our soul shuns intimate contact,
the floral wedding, the deifying
embrace of matter forever
intoxicated by the sublime
act of union.
We’re but starving beggars
who barely sniff the crumbs
of that banquet in the clouds
celebrated by our flesh.
And that’s why sensuality’s sad
one minute after ecstasy.
AUSÊNCIA
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
ABSENCE
I used to consider absence a lack.
And I ignorantly regretted that lack.
Today I have nothing to regret.
There is no lack in absence.
Absence is a presence in me.
And I feel it, a perfect whiteness, so close and cozy in my arms
that I laugh, dance, and invent glad exclamations,
since absence, this embodied absence,
can’t be taken away from me.
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
TRUTH
The door of truth was open
but would only let in half
a person at a time.
And so it wasn’t possible to have the whole truth,
since the half person who entered
returned with the picture of a half truth.
And the person’s other half
likewise brought back a half picture.
And the two halves didn’t line up.
They broke through the door. They tore it down.
They arrived at the luminous place
where the truth beamed its brilliant fires.
It was divided into two halves,
one different from the other.
They argued over which half was more beautiful.
Since neither half was entirely beautiful,
they had to choose. And so each person chose
according to his whim, his illusion, his myopia.
FAREWELL / FAREWELL (1987; FIRST PUBLISHED IN 1996)
UNIDADE
As plantas sofrem como nós sofremos.
Por que não sofreriam
se esta é a chave da unidade do mundo?
A flor sofre, tocada
por mão inconsciente.
Há uma queixa abafada
em sua docilidade.
A pedra é sofrimento
paralítico, eterno.
Não temos nós, animais,
sequer o privilégio de sofrer.
UNITY
Plants also suffer.
Why wouldn’t they, if suffering
is the key to the world’s unity?
A flower suffers when touched
by the oblivious hand.
There’s a muffled complaint
in its soft pliancy.
A stone is paralytic,
eternal suffering.
We who are animals
can’t even claim
the exclusive privilege of suffering.
A CASA DO TEMPO PERDIDO
Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e outra mais e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
Multitudinous Heart Page 18