Multitudinous Heart

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Multitudinous Heart Page 18

by Carlos Drummond de Andrade


  you don’t tell your husband or lover.

  Cautious Márgara smiles at me,

  and hand in hand we walk in the night,

  a boy-man and a woman-man,

  parading through the dark streets

  our discontent with the malformed world.

  O PADRE PASSA NA RUA

  Beijo a mão do padre

  a mão de Deus

  a mão do céu

  beijo a mão do medo

  de ir para o inferno

  o perdão

  de meus pecados passados e futuros

  a garantia de salvação

  quando o padre passa na rua

  e meu destino passa com ele

  negro

  sinistro

  irretratável

  se eu não beijar a sua mão.

  THE PRIEST WALKS DOWN THE STREET

  I kiss the hand of the priest

  the hand of God

  the hand of heaven

  I kiss the hand of fear

  of going to hell

  forgiveness

  for my past and future sins

  the promise of salvation

  when the priest walks down the street

  and my fate walks with him

  black

  sinister

  irrevocable

  if I don’t kiss his hand.

  CONFISSÃO

  Na pequena cidade

  não conta seu pecado.

  É terrível demais para contar

  nem merece perdão.

  Conta as faltas simples

  e guarda seu segredo de seu mundo.

  A eterna penitência:

  três padres-nossos, três ave-marias.

  Não diz o padre, é como se dissesse:

  — Peque o simples, menino, e vá com Deus.

  O pecado graúdo

  acrescido do outro de omiti-lo

  aflora noite alta

  em avenidas úmidas de lágrimas,

  escorpião mordendo a alma

  na pequena cidade.

  Cansado de estar preso

  um dia se desprende no colégio

  e se confessa, hediondo.

  — Mas você tem certeza de que fez

  o que pensa que fez, ou sonha apenas?

  Há pecados maiores do que nós.

  Em vão tentamos cometê-los, ainda é cedo.

  Vá em paz com seus pecados simples,

  reze três padres-nossos, três ave-marias.

  CONFESSION

  In that small town

  he doesn’t tell his sin.

  It’s too terrible to tell

  and doesn’t deserve forgiveness.

  He tells his little misdeeds

  and hides the secret of his world.

  The eternal penance:

  three Our Fathers and three Hail Marys.

  The priest doesn’t say it, but it’s as if he said,

  “Stick to little sins, son, and God be with you.”

  His big sin,

  compounded by the sin of not telling it,

  rears its head at night

  on tear-soaked avenues,

  a scorpion gnawing at his soul

  in that small town.

  Tired of being enchained,

  one day at school he breaks loose

  and tells the awful truth in confession.

  “But are you certain of having done

  what you think you did, or are you just dreaming?

  There are sins bigger than we are,

  and in vain we try to commit them. You’re still young.

  “Go in peace with your little sins.

  Say three Our Fathers and three Hail Marys.”

  A PUTA

  Quero conhecer a puta.

  A puta da cidade. A única.

  A fornecedora.

  Na Rua de Baixo

  onde é proibido passar.

  Onde o ar é vidro ardendo

  e labaredas torram a língua

  de quem disser: Eu quero

  a puta

  quero a puta quero a puta.

  Ela arreganha dentes largos

  de longe. Na mata do cabelo

  se abre toda, chupante

  boca de mina amanteigada

  quente. A puta quente.

  É preciso crescer

  esta noite a noite inteira sem parar

  de crescer e querer

  a puta que não sabe

  o gosto do desejo do menino

  o gosto menino

  que nem o menino

  sabe, e quer saber, querendo a puta.

  THE WHORE

  I want to know the whore.

  The town whore. The only one.

  The supplier.

  On Lower Street,

  where we’re not allowed to go.

  Where the air is burning glass

  and flames sear the tongue

  of whoever says: I want

  the whore

  I want the whore I want the whore.

  She bares large teeth

  from afar. In her forest of hair

  she opens wide the sucking

  mouth of a hot buttery

  mine. The hot whore.

  I’ve got to grow

  tonight all night unceasingly

  to grow and to want

  the whore who doesn’t know

  the taste of the boy’s desire,

  the boyish taste

  not even the boy knows,

  and he wants to know, wanting the whore.

  TRÊS NO CAFÉ

  No café semideserto

  a mosca tenta

  pousar no torrão de açúcar sobre o mármore.

  Enxoto-a. Insiste. Enxoto-a.

  A luz é triste, amarela, desanimada.

  Somos dois à espera

  de que o garçom, mecânico, nos sirva.

  Olho para o companheiro até a altura da gravata.

  Não ouso subir ao rosto marcado.

  Fixo-me na corrente do relógio

  presa ao colete; velhos tempos.

  Pouco falamos. O som das xícaras,

  quase uma conversa. Tão raro

  assim nos encontrarmos frente a frente

  mais que por minutos.

  Mais raro ainda,

  na banalidade do café.

  A mosca volta.

  Já não a espanto. Queda entre nós,

  partícipe de mútuo entendimento.

  Então, é este o mesmo homem

  de antes de eu nascer

  e de amanhã e sempre?

  Curvado.

  Seu olhar é cansaço de existência,

  ou sinto já (nem pensar) a sua morte?

  Este estar juntos no café,

  não hei de esquecê-lo nunca, de tão seco

  e desolado — os três

  eu, ele, a mosca—:

  imagens de mera circunstância

  ou do obscuro

  irreparável sentido de viver.

  THREESOME IN A CAFÉ

  In the half-empty café

  a fly circling over the marble table

  tries to land on a lump of sugar.

  I shoo it away. It insists. I shoo it away.

  The lighting is sad, yellow, discouraged.

  There are two of us waiting

  to be served by the mechanical waiter.

  I look at my companion as far up as his necktie.

  I don’t dare go as high as his furrowed face.

  I fix my eyes on the watch chain

  attached to his vest: the old days.

  We hardly talk. The clinking of our teacups,

  a quasi-conversation. It’s rare

  for us to meet like this, face to face,

  for more than a few minutes.

  Rarer still,

  in the banal setting of a café.

  The fly returns.

  I no longer fight it. It sits between us,

  partaking in our mutual understanding.

  So is this the sa
me man

  from when I wasn’t yet born,

  from tomorrow and forever?

  Hunched over.

  Weariness of existing fills his gaze,

  or do I already feel (God forbid) his death?

  I’ll surely never forget this time spent

  together, so arid and desolate, here

  in this café, the three of us:

  me, him, the fly: images

  of mere circumstance

  or of the obscure

  irreparable meaning of life.

  CORPO / BODY (1984)

  AS CONTRADIÇÕES DO CORPO

  Meu corpo não é meu corpo,

  é ilusão de outro ser.

  Sabe a arte de esconder-me

  e é de tal modo sagaz

  que a mim de mim ele oculta.

  Meu corpo, não meu agente,

  meu envelope selado,

  meu revólver de assustar,

  tornou-se meu carcereiro,

  me sabe mais que me sei.

  Meu corpo apaga a lembrança

  que eu tinha de minha mente.

  Inocula-me seu patos,

  me ataca, fere e condena

  por crimes não cometidos.

  O seu ardil mais diabólico

  está em fazer-se doente.

  Joga-me o peso dos males

  que ele tece a cada instante

  e me passa em revulsão.

  Meu corpo inventou a dor

  a fim de torná-la interna,

  integrante do meu Id,

  ofuscadora da luz

  que aí tentava espalhar-se.

  Outras vezes se diverte

  sem que eu saiba ou que deseje,

  e nesse prazer maligno,

  que suas células impregna,

  do meu mutismo escarnece.

  Meu corpo ordena que eu saia

  em busca do que não quero,

  e me nega, ao se afirmar

  como senhor do meu Eu

  convertido em cão servil.

  Meu prazer mais refinado,

  não sou eu quem vai senti-lo.

  É ele, por mim, rapace,

  e dá mastigados restos

  à minha fome absoluta.

  Se tento dele afastar-me,

  por abstração ignorá-lo,

  volta a mim, com todo o peso

  de sua carne poluída,

  seu tédio, seu desconforto.

  Quero romper com meu corpo,

  quero enfrentá-lo, acusá-lo,

  por abolir minha essência,

  mas ele sequer me escuta

  e vai pelo rumo oposto.

  Já premido por seu pulso

  de inquebrantável rigor,

  não sou mais quem dantes era:

  com volúpia dirigida,

  saio a bailar com meu corpo.

  THE BODY’S CONTRADICTIONS

  My body’s not my body,

  it’s the illusion of another

  being. A master at the art

  of hiding me, it even

  hides me from myself.

  My body’s not my agent.

  It’s my sealed envelope,

  a threatening gun,

  and finally my jailer:

  it knows me better than I do.

  My body deletes the memory

  I once had of my mind.

  It plants in me its pathos,

  which strikes, wounds, condemns me

  for crimes I didn’t commit.

  Its most diabolical trick

  is to make itself sick, forcing

  me to bear the weight

  of each new ache it weaves

  and passes to me in disgust.

  That’s why my body invented

  pain: to make it internal,

  an integral part of my id,

  where it dims the light that tried

  to spread into every corner.

  At times my body has fun

  without my knowledge and against

  my will, and as the vicious

  pleasure runs through its cells,

  it laughs at my nonreaction.

  Ordering me to go out

  in search of what I don’t want,

  it negates my ego, affirming

  itself to be lord of my I,

  reduced to a servile dog.

  Instead of me, my greedy

  body is the one that feels

  my most exquisite pleasure,

  giving only chewed-up scraps

  to my unsatiated hunger.

  If I try to get away

  by thinking of abstract things,

  it comes back to me with all

  the weight of its filthy flesh,

  its boredom and discomfort.

  I want to break with my body,

  I want to confront and accuse it

  for having annulled my essence,

  but it goes off on its own

  and doesn’t even hear me.

  Constantly pressed by its pulse

  that never misses a beat,

  I’m not who I used to be:

  led by its sensual step,

  I go dancing with my body.

  O MINUTO DEPOIS

  Nudez, último véu da alma

  que ainda assim prossegue absconsa.

  A linguagem fértil do corpo

  não a detecta nem decifra.

  Mais além da pele, dos músculos,

  dos nervos, do sangue, dos ossos,

  recusa o íntimo contato,

  o casamento floral, o abraço

  divinizante da matéria

  inebriada para sempre

  pela sublime conjunção.

  Ai de nós, mendigos famintos:

  Pressentimos só as migalhas

  desse banquete além das nuvens

  contingentes de nossa carne.

  E por isso a volúpia é triste

  um minuto depois do êxtase.

  THE MINUTE AFTER

  With only nakedness, its final

  veil, the soul’s still out of reach.

  The body’s fertile language

  can’t detect or interpret it.

  Beyond the skin, muscles,

  nerves, blood, and bones,

  our soul shuns intimate contact,

  the floral wedding, the deifying

  embrace of matter forever

  intoxicated by the sublime

  act of union.

  We’re but starving beggars

  who barely sniff the crumbs

  of that banquet in the clouds

  celebrated by our flesh.

  And that’s why sensuality’s sad

  one minute after ecstasy.

  AUSÊNCIA

  Por muito tempo achei que a ausência é falta.

  E lastimava, ignorante, a falta.

  Hoje não a lastimo.

  Não há falta na ausência.

  A ausência é um estar em mim.

  E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

  que rio e danço e invento exclamações alegres,

  porque a ausência, essa ausência assimilada,

  ninguém a rouba mais de mim.

  ABSENCE

  I used to consider absence a lack.

  And I ignorantly regretted that lack.

  Today I have nothing to regret.

  There is no lack in absence.

  Absence is a presence in me.

  And I feel it, a perfect whiteness, so close and cozy in my arms

  that I laugh, dance, and invent glad exclamations,

  since absence, this embodied absence,

  can’t be taken away from me.

  VERDADE

  A porta da verdade estava aberta,

  mas só deixava passar

  meia pessoa de cada vez.

  Assim não era possível atingir toda a verdade,

  porque a meia pessoa que entrava

  só trazia o perfil de meia verdade.

  E sua segunda metade

 
voltava igualmente com meio perfil.

  E os meios perfis não coincidiam.

  Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

  Chegaram ao lugar luminoso

  onde a verdade esplendia seus fogos.

  Era dividida em metades

  diferentes uma da outra.

  Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

  Nenhuma das duas era totalmente bela.

  E carecia optar. Cada um optou conforme

  seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

  TRUTH

  The door of truth was open

  but would only let in half

  a person at a time.

  And so it wasn’t possible to have the whole truth,

  since the half person who entered

  returned with the picture of a half truth.

  And the person’s other half

  likewise brought back a half picture.

  And the two halves didn’t line up.

  They broke through the door. They tore it down.

  They arrived at the luminous place

  where the truth beamed its brilliant fires.

  It was divided into two halves,

  one different from the other.

  They argued over which half was more beautiful.

  Since neither half was entirely beautiful,

  they had to choose. And so each person chose

  according to his whim, his illusion, his myopia.

  FAREWELL / FAREWELL (1987; FIRST PUBLISHED IN 1996)

  UNIDADE

  As plantas sofrem como nós sofremos.

  Por que não sofreriam

  se esta é a chave da unidade do mundo?

  A flor sofre, tocada

  por mão inconsciente.

  Há uma queixa abafada

  em sua docilidade.

  A pedra é sofrimento

  paralítico, eterno.

  Não temos nós, animais,

  sequer o privilégio de sofrer.

  UNITY

  Plants also suffer.

  Why wouldn’t they, if suffering

  is the key to the world’s unity?

  A flower suffers when touched

  by the oblivious hand.

  There’s a muffled complaint

  in its soft pliancy.

  A stone is paralytic,

  eternal suffering.

  We who are animals

  can’t even claim

  the exclusive privilege of suffering.

  A CASA DO TEMPO PERDIDO

  Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.

  Bati segunda vez e outra mais e mais outra.

  Resposta nenhuma.

  A casa do tempo perdido está coberta de hera

  pela metade; a outra metade são cinzas.

  Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando

 

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