O Grande Gatsby (Penguin)

Home > Fiction > O Grande Gatsby (Penguin) > Page 6
O Grande Gatsby (Penguin) Page 6

by F. Scott Fitzgerald


  A despeito das intenções e aspirações religiosas dos primeiros colonizadores puritanos, hoje a paisagem é dominada por fatores comerciais e materiais (embora as preocupações religiosas e comerciais possam ter estado ligadas desde o início. Em America’s coming of age, Van Wyck Brooks sugere o mesmo: “A literatura americana do século xvii se compõe de partes iguais, digamos assim, de devoção e propaganda”). Como já foi dito, Gatsby vive num mundo de propaganda e é ele mesmo uma espécie de peça publicitária. A questão é se os seus “gestos”, que segundo Nick refletem e expressam “certa sensibilidade exaltada às promessas da vida”, indicam uma forma incipiente de “devoção” particular.

  Quando Nick afirma que o Leste lhe “pareceu assim amaldiçoado, distorcido para além do poder corretivo de meus olhos”, o termo “assim” se refere a uma “cena noturna de El Greco”. O pintor é famoso por suas figuras alongadas e pelo que se julgam exageros febris. Já que, segundo o próprio Nick, sua visão dos fatos é incorreta e incorrigível, talvez devêssemos aceitar a dica, proposital ou não, de que se trata de um retrato de Gatsby à maneira de El Greco — enlevado, ampliado e glorificado com exaltação. Mas El Greco, tal qual Vermeer, que podemos considerar menos propenso à distorção (na verdade, ele pintava com uma visão tão prodigiosamente exata quanto possível), é um artista, e toda arte envolve distorção — seleção, interpretação, amplificação. Pode-se dizer que a distorção é inerente à representação. Fossem quais fossem as intenções de Nick ao escrever, mesmo que se tratasse apenas de um “sonho de inverno” para distraí-lo e confortá-lo da deplorável solidez do Meio-Oeste, ele ainda assim produziu uma obra de arte; e não há como deslindar as razões que se escondem por trás da confecção de uma obra de arte.

  É um livro de Fitzgerald, obviamente, e ao mostrar Nick lidando com os problemas e armadilhas de “enxergar” seu material, de descobrir uma forma de “escrever” Gatsby que fosse a um só tempo falseada e laudatória, Fitzgerald acrescentou toda uma nova dimensão a seu trabalho. Henry James disse uma vez: “Há a história direta de um herói, e há também, graças à conexão íntima das coisas, a história de sua própria história”. Ao contar a história não só de Gatsby, mas de Nick tentando escrever essa história, Fitzgerald embarca na discussão do que estaria envolvido nessa tentativa de enxergar e escrever a própria América. O resultado é breve (vê-se nesses inspirados excertos), enganosamente simples, e tem algo da economia esguia, porém abundante, de uma parábola (para um livro tão enraizado de modo tão explícito nos anos 1920, observa Matthew Broccoli, ele contém pouquíssimos dados sociológicos e antropológicos). É discursivamente perfeito e inesgotável. Na minha opinião, O grande Gatsby é a obra de ficção mais perfeitamente construída da literatura americana.

  Quando Nick vai pela primeira vez a uma festa de Gatsby, fica “ressabiado de sua alegria espectroscópica”: ele julga muitas coisas “fúteis” e “desajeitadas”. Porém, depois de duas taças de champanhe, “a cena se transformara em algo significativo, básico e profundo”. Há um quê de autodepreciação nesse exagero consciente (se fosse simples assim…). Críticos como Richard Godden podem até alegar que o champanhe era fraco (o nome do capítulo de Godden é “Glamour rodopiante”), mas isso seria perder algo da inegável magia do romance e sua polivalência irredutível. Pode-se chamar isso de indecisão. Há dias em que o carro é amarelo; em outros, parece ser verde-claro. Às vezes Gatsby fica entalado em nossa garganta, às vezes ele nos cativa o coração. Talvez ele seja como os livros de sua biblioteca: “absolutamente verdadeiro” onde menos se espera, mas completamente ilegível porque suas páginas internas não foram cortadas.

  Mas o que vocês queriam?

  O que esperavam?

  Fevereiro de 1990

  a As citações do Satyricon, de Petrônio, foram baseadas na tradução de Miguel Ruas da coleção Mestres Pensadores (Escala/Ediouro, s.d.), com algumas adaptações para os propósitos desta introdução. (n. t.) Todas as notas do tradutor estão no rodapé. No final do livro, numeradas, estão as notas da edição original.

  b Jonathan Edwards (1703-58), teólogo calvinista, considerado um dos grandes pensadores da história dos Estados Unidos. Foi o principal divulgador e intérprete do primeiro reavivamento religioso do país, com milhares de conversões e o surgimento de inúmeras igrejas.

  c Referência ao livro de contos All the sad young men, de Fitzgerald, inédito no Brasil.

  d Tradução de Jorio Dauster (São Paulo: Companhia das Letras, 1993).

  e Livro de viagens sobre as explorações de Henry James pelo país, publicado em 1907.

  f Ou como se, no Brasil, alguém afirmasse ter vindo do Rio de Janeiro, no Sul do país.

  O grande Gatsby

  Para Zelda, outra vez

  Então use o chapéu de ouro, se isso irá impressioná-la;

  E se conseguir saltar bem alto, salte para ela também,

  Até que ela grite: “Meu amor com chapéu de ouro, meu

  amor que salta bem alto,

  Preciso ter você!”.

  thomas parke d’invilliers1

  1

  Em meus anos mais vulneráveis de juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:

  — Sempre que tiver vontade de criticar alguém — ele disse —, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.

  Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de uma forma contida, e entendi que ele queria dizer muito mais. Como consequência, adquiri o hábito de me abster de todos os julgamentos, um costume que me garantiu o acesso a diversas naturezas curiosas e também me fez vítima de alguns maçantes inveterados. A mente anormal detecta e se apega muito rapidamente a essa qualidade quando ela se manifesta em alguém normal, e por isso ocorreu de, na faculdade, me acusarem injustamente de ser um homem político, só porque eu guardava as angústias secretas de homens extravagantes e desconhecidos. A maioria das confidências era involuntária — quantas vezes fingi estar dormindo, preocupado com outras coisas ou levianamente hostil ao perceber, através de sinais inconfundíveis, que uma revelação íntima se desenhava no horizonte; pois as revelações íntimas dos jovens, ou pelo menos os termos que usam para expressá-las, costumam ser derivativas e deturpadas por supressões evidentes. Abster-se de julgamentos é questão de esperança infinita. Até hoje evito cometer grandes equívocos lembrando, como meu pai orgulhosamente sugeriu e eu orgulhosamente repito, que o senso fundamental de decência é distribuído de forma desigual no nascimento.

  E, após gabar-me assim da minha tolerância, devo confessar que ela tem limites. Um comportamento pode ser edificado na pedra ou nos pântanos mais lamacentos, mas a partir de certo ponto eu não me importo mais. Quando retornei do Leste no último outono, desejei que o mundo estivesse uniforme e em estado constante de vigilância moral; não queria mais saber de jornadas desenfreadas atrás de vislumbres privilegiados do coração humano. Apenas Gatsby, o homem que dá nome a este livro, se achava isento dessa minha reação — Gatsby, que representava tudo aquilo que me causava genuíno desprezo. Se a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos, então havia algo de grandioso naquele homem, certa sensibilidade exaltada às promessas da vida, como se ele guardasse alguma relação com aquelas máquinas intrincadas que registram terremotos a quilômetros de distância. Essa receptividade nada tinha a ver com a frouxa vulnerabilidade que muitos qualificam de “temperamento criativo” — era um talento extraordinário para a esperança, uma prontidão romântica tal como nunca encontrei em ninguém e dificilmente tornarei a encontrar. Não — Gatsby saiu-se bem no final; é aquilo que estava à espreita em Gatsby, a espécie de poeira imunda que flutuava na superfície de seus sonhos, que matou temporariamente meu interesse pelas tristezas inúteis e pelas alegrias fugazes dos homens.

  Venho de uma família proeminente e próspera, estabelecida no Meio-Oeste há três gerações. Os Carraway são uma espécie de clã que, segundo a tradição, descende dos duques de Buccleuch,1 mas o verdadeiro fundador da
linhagem foi o irmão de meu avô, que veio para cá em 1851, enviou alguém em seu lugar para a Guerra Civil e abriu a loja de ferramentas a que meu pai se dedica até hoje.

  Não conheci esse meu tio-avô, mas dizem que pareço com ele — sobretudo com base no retrato um tanto sisudo que está pendurado no escritório de meu pai. Graduei-me em New Haven em 1915,2 apenas um quarto de século após meu pai, e pouco depois tomei parte naquela tardia migração teutônica conhecida como a Grande Guerra. Gostei tanto dessa incursão que voltei inquieto. Em vez de um centro palpitante do mundo, o Meio-Oeste agora me parecia a esquina rústica do universo — de modo que decidi ir para o Leste aprender o negócio de títulos. Todo mundo que eu conhecia estava no ramo, então presumi que havia lugar para mais um. Meus tios e tias discutiram o assunto como se estivessem escolhendo uma escola preparatória para mim, e por fim disseram: “Por que não?”, com expressão séria e hesitante. Meu pai concordou em me bancar por um ano e, após inúmeros adiamentos, me mudei para o Leste — de forma permanente, eu achava — na primavera de 1922.

  O mais prático teria sido alugar um quarto em Nova York, mas estávamos numa estação quente e eu havia acabado de deixar um país de campos vastos e árvores acolhedoras, de modo que me pareceu uma boa ideia a sugestão de um jovem no escritório para que alugássemos uma casa numa cidade do entorno. Ele encontrou o imóvel, um bangalô frágil e castigado pelo tempo que custava oitenta dólares por mês, mas na última hora a firma resolveu transferi-lo para Washington e eu fui sozinho para o interior. Eu tinha um cachorro — pelo menos o tive por uns dias até que ele fugiu —, um velho Dodge e uma moça finlandesa que arrumava minha cama, fazia o café e balbuciava consigo mesma sábias palavras em finlandês enquanto cozinhava no fogão elétrico.

  Senti-me solitário por um ou dois dias, até que, certa manhã, um homem que estava ali havia menos tempo que eu me parou na estrada.

  — Como faço para chegar ao centro de West Egg? — ele perguntou, desamparado.

  Eu lhe dei as indicações. E, conforme ia caminhando, não me senti mais solitário. Eu era um guia, um pioneiro, um autêntico colonizador. Ele havia casualmente me conferido o status de morador da região.

  E assim, com o sol e as explosões de folhas brotando nas árvores, à maneira como as coisas crescem num filme acelerado, tive aquela certeza familiar de que a vida se renovava a cada verão.

  Em primeiro lugar, havia muito que ler, e muita saúde para extrair daquela atmosfera jovem e revigorante. Comprei uma dúzia de livros sobre títulos bancários, títulos de crédito e de investimento, e eles jaziam vermelhos e dourados em minha estante feito moedas recém-cunhadas, prontos para revelar os segredos resplandecentes que só Midas, Morgan e Mecenas conheciam.a Além disso, eu tinha a nobre intenção de ler muitos outros livros. Na faculdade, demonstrei algum pendor para a literatura — certo ano, escrevi uma série de editoriais muito solenes e óbvios para o Yale News — e agora iria resgatar tudo isso e converter-me no mais focado dos especialistas, o “homem completo”. Não era apenas um epigrama — afinal, pode-se observar melhor a vida a partir de uma única janela.

  Foi por acaso que acabei alugando um imóvel numa das comunidades mais estranhas da América do Norte: justamente naquela estreita e conturbada ilha que se estende a leste de Nova York — onde há, entre outras curiosidades naturais, duas formações topográficas muito incomuns. A trinta quilômetros da metrópole, um par de ovos gigantes, idênticos no contorno e separados apenas por uma singela baía, se projetam sobre a massa de água salgada mais dócil do hemisfério ocidental, esse grande celeiro inundado que é o estreito de Long Island.b Eles não são perfeitamente ovais — como o ovo de Colombo, são achatados na ponta —, mas sua semelhança física deve ser fonte infinita de assombro para as gaivotas que os circundam. Para os que não voam, mais interessante é notar sua dessemelhança em todos os outros aspectos exceto a forma e o tamanho.

  Fui morar em West Egg — o menos, digamos, chique dos dois, embora seja uma alcunha superficial para expressar o estranho e um tanto sinistro contraste entre ambos. Minha casa se situava na ponta mais alta do ovo, a apenas cinquenta metros do estreito, espremida entre duas enormes mansões cujo aluguel variava de quinze a vinte mil dólares por temporada. A que ficava à minha direita era um empreendimento colossal em todos os sentidos — uma réplica fiel de um certo Hôtel de Ville na Normandia, com uma torre lateral, excepcionalmente nova sob uma camada rala de hera bruta, uma piscina de mármore e mais de quinze hectares de gramado e jardim. Era a mansão de Gatsby. Ou melhor, como eu ainda não conhecia o sr. Gatsby, era uma mansão habitada por um cavalheiro com esse nome. Minha própria casa era de mau gosto, mas nem tanto, e ainda assim ninguém se interessava por ela, de modo que ganhei uma vista panorâmica para a baía, uma vista parcial para o gramado do vizinho e a reconfortante proximidade de milionários — tudo isso por oitenta dólares por mês.

  Do outro lado da singela baía, os palacetes brancos da elegante East Egg reluziam na superfície da água, e a história desse verão começa de verdade na noite em que fui jantar na casa dos Buchanan, em East Egg. Daisy era minha prima em segundo grau, e Tom eu havia conhecido na faculdade. Logo após a guerra, passei uns dias com eles em Chicago.

  O marido dela, entre tantos outros feitos esportivos, havia sido um dos pontas mais eficientes do futebol americano em New Haven — de certo modo, uma celebridade nacional, um desses homens que atingem uma superioridade tão intensa e absoluta aos vinte e um anos de idade que tudo o que vem depois tem um gosto amargo de anticlímax. Sua família era extremamente rica — mesmo na época da faculdade, sua prodigalidade com o dinheiro era motivo de reprovação —, mas agora ele deixara Chicago e se mudara para o Leste em grande estilo: mandara, por exemplo, trazer de Lake Forestc um time inteiro de cavalos de polo. Era difícil entender como um homem da minha geração podia ser tão rico a ponto de fazer algo assim.

  Não sei por que eles decidiram se mudar para o Leste. Haviam passado um ano na França sem nenhuma razão especial, e depois perambularam de lá para cá, inquietos, por onde houvesse gente milionária que jogava polo. Dessa vez a mudança era definitiva, disse Daisy ao telefone, mas eu duvidei — não conhecia minha prima tão bem, mas sentia que Tom vagaria numa eterna busca, um tanto nostálgica, pela turbulência dramática de algum jogo de futebol perdido no tempo.

  E assim, numa noite quente de ventania, fui a East Egg para visitar dois velhos amigos que eu mal conhecia. A casa deles era mais rebuscada do que eu imaginava: uma alegre mansão colonial georgiana, toda branca e vermelha, com vista para a baía. O gramado se iniciava na praia e seguia por uns quatrocentos metros até a porta de entrada, passando sobre relógios de sol, calçadas de tijolos e jardins flamejantes — quando enfim alcançava a casa, dispersava-se nas laterais sob a forma de vistosas videiras, como se atingisse o ápice de sua jornada. A fachada era cortada por uma fileira de portas-balcão, que àquela hora resplandeciam com os reflexos dourados do sol e se abriam ao ar quente daquela tarde de ventania, e Tom Buchanan estava parado no pórtico de entrada, em roupas de montaria, com as pernas afastadas.

  Ele mudara muito desde a época de New Haven. Agora era um homem robusto de trinta anos, com os cabelos cor de palha, a boca tensa e o porte altivo. Dois olhos brilhantes e arrogantes se destacavam de seu rosto e lhe davam a impressão de estar sempre avançando de forma agressiva. Nem mesmo a ostentação efeminada de suas roupas de montaria escondiam a força imensa daquele corpo — ele parecia preencher suas botas lustrosas até o ponto de forçarem o laço do cadarço, e dava para distinguir, através do casaco leve, um bom feixe de músculos se deslocando quando ele movia o ombro. Era um corpo dotado de poder assustador — um corpo cruel.

  Sua voz, um áspero e rouco tenor, acentuava o ar de displicência que Tom transmitia. Havia nela um toque de condescendência paternal, inclusive quando ele se dirigia a pessoas de seu afeto — e havia gente em New Haven que o odiava com todas as forças.

  “Veja, não pense que a minha opinião sobre esse assunto é definitiva”, ele parecia dizer, “s
ó porque sou mais forte e másculo do que você.” Fizemos parte da mesma fraternidade universitária3 e, mesmo que nunca tivéssemos sido íntimos, sempre tive a impressão de que ele nutria uma boa opinião sobre mim e que, com esse seu jeito ávido, implacável e desafiador, desejava obter a minha afeição.

  Conversamos por alguns minutos no pórtico banhado de sol.

  — Mas que bela casa eu fui arrumar — ele exclamou, os olhos inquietos.

  Puxando-me pelo braço, ele me virou e apontou a paisagem com sua mão enorme, incluindo no enquadramento um jardim italiano encravado, dois metros quadrados de rosas perfumadas e um barco a motor de nariz pontudo que balançava entre as ondas.

  — Era de Demaine, o cara do petróleo. — Ele me girou de volta, educada e abruptamente. — Vamos para dentro.

  Caminhamos por um corredor de pé-direito alto até uma sala clara e rosada, ligada fragilmente à casa por duas portas-balcão, uma de cada lado. As janelas estavam entreabertas e lançavam um brilho prateado sobre a grama fresca do jardim, que parecia crescer um pouco para dentro da casa. A brisa que entrava na sala agitava as cortinas de lá para cá, feito bandeiras pálidas, revirando-as em direção ao teto fosco e com textura de chantili, e então as soltando sobre o tapete vinho, onde imprimiam uma sombra como a do vento sobre a superfície do mar.

 

‹ Prev